Educação Infantil
Fevereiro/2013
Currículo | Edição 190
Rumo ao
fundamental
Envolta em expectativa tanto para as crianças, quanto
para pais e escola, a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental
impõe um desafio: integrar as duas etapas, evitando a ruptura entre brincadeira
e letramento
Analice Bonatto
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"Dois, dois", repetem as crianças da Emeb
Vital Brasil, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, ao mesmo tempo em
que mostram o número com as mãos ao serem questionadas sobre quando vão para o
Ensino Fundamental. Com entusiasmo, mostram no calendário os dois meses até o
final de 2012. A maioria delas vai para a Emeb Viriato Correia, a poucos metros
dali. A proximidade é um dos fatores que faz muitas já conhecerem a nova escola.
A princípio, a
questão sobre o que vão fazer no EF desperta mais respostas relacionadas ao
brincar: "lá tem quadra e vamos jogar bola", diz uma delas. Os dois
parquinhos e o jardim encantado também são lembrados. Porém, a mesma questão
acaba gerando outras respostas, como "vai ter muita lição de casa", "vamos
usar caneta e caderno grande", dizem ao mesmo tempo. "Lição de letra
de mão", diz um aluno já alfabetizado, apontado por elas como inteligente,
que, por sua vez, justifica a ida para a nova fase escolar para ficar
"ainda mais inteligente".
A percepção desses alunos dialoga com o panorama desenhado pela pesquisa Faz de conta que eu cresci: a voz da criança na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, de Adriana Zampieri Martinati, coordenadora de área da Secretaria Municipal de Educação de Limeira (SP). Seu estudo com crianças na Educação Infantil, e no ano seguinte, com as mesmas crianças ingressando no EF, mostra a expectativa e a curiosidade sobre a nova escola, mas também a noção da ruptura, já que em alguns momentos elas dizem que farão "muita lição", por exemplo. "Apesar de a legislação prever a articulação entre o EI e o EF, na prática se vê a escassez de um trabalho sistemático acerca da vida futura e pregressa destas crianças", avalia Adriana.
Brincar
desvalorizado
Se, num momento, a brincadeira é valorizada, no outro é a alfabetização que se torna prioridade. Se num ano, a criança deveria estar em um espaço livre e instigante, no seguinte ela deve ficar sentada na cadeira. Como minimizar o estranhamento e o impacto de uma transição imposta apenas pelo currículo, já que a criança é a mesma? Para Adriana, é preciso ouvir essas crianças, promover entrevistas, visitas à nova escola, festa de encerramento etc. "Tais ações permitem analisar as expectativas das crianças, aliviar tensões e angústias e promover maior segurança, além de um trabalho que contemple as diferentes formas de expressão, destacando o papel da atividade lúdica. Mas para isso é fundamental investimento maciço na formação continuada", defende.
Os documentos
da área enfatizam que, mesmo nos primeiros anos do Ensino Fundamental, as
práticas pedagógicas devem garantir às crianças múltiplas experiências, dentre
estas as brincadeiras têm relevância especial. Mas tanto na pesquisa prática
quanto no levantamento teórico, Adriana identificou que no primeiro ano do EF a
ênfase maior das escolas é na alfabetização e letramento. "Há professores
que não reconhecem a importância do brincar. É uma questão ampla, porque nossa
cultura desvaloriza isso, vê como uma atividade de recreação que, às vezes, até
atrapalha a aprendizagem", avalia.
As habilidades
sociais da criança também merecem atenção, porque podem ser responsáveis pelos
momentos mais estressantes na nova fase. A professora e psicóloga Gisele Regina
Stasiak pesquisou a percepção do estresse entre as crianças durante essa
transição. Em seu estudo, o relacionamento com os colegas e demandas não
acadêmicas foram as situações que apareceram como as mais estressantes.
"Não foi o que exigem delas, como a nota, mas a interação social",
explica. Como exemplo, ela cita algumas situações colocadas no estudo nessa
categoria: 'meus colegas não me convidaram para brincar' e 'a professora me deu
bronca'. Assim, além da preparação gradual da criança, Gisele destaca a
importância do desenvolvimento da sua habilidade social.
No contexto
familiar, o estudo revelou duas variáveis importantes: a comunicação negativa
dos pais (brigam e xingam) e a punição corporal. As crianças que viviam neste
contexto apresentaram estresse maior. "Elas demonstraram o desejo de
melhor interação na escola e na família", relata. Para ela, a escola
poderia propor aos pais um programa de qualidade na interação familiar.
Ceduc Creche Natura: pesquisadores defendem que é preciso levar a brincadeira da EI para os primeiros anos do EF
Brincar
letrando
Vanessa Ferraz Almeida, professora adjunta da
Faculdade de Educação da UFMG, defende que para se ter uma integração maior
entre estes dois primeiros níveis é necessário trazer o brincar para a Educação
Infantil, mas sem esquecer a linguagem escrita. E no Ensino Fundamental,
priorizar a linguagem escrita sem esquecer que as crianças também brincam.
"Por isso digo 'brincar letrando' ou um 'letrar brincando' que é uma
paráfrase da Magda Soares do livro Letramento: Um tema em três gêneros, que
fala da apropriação do código da leitura e escrita contextualizado pelas
práticas sociais", explica.
Para entender
este processo, Vanessa acompanhou crianças de uma escola de EI da rede
municipal de Belo Horizonte e, depois, o mesmo grupo no EF. Durante a pesquisa,
ela observou que grande parte das rotinas, da organização do tempo e do espaço
estava centrada em torno do brincar (entre 26% e 64% do tempo total) e das
rodas de conversa (entre 5% e 25% do tempo total).
"Concordo
com esta organização, entretanto, à medida que as crianças iam brincando,
também procuravam se apropriar da cultura escrita", oberva ela.
Surpresa com a
busca incessante das crianças pela cultura escrita e pela leitura, a
pesquisadora percebeu que elas queriam se apropriar de uma cultura
grafocêntrica. Apesar de a professora das crianças colher este interesse, sua
sistematização não aconteceu. Para ela e outros pesquisadores do Centro de
Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as crianças não têm de sair da EI
sabendo ler e escrever, mas as habilidades e capacidades relacionadas ao letramento
precisam estar presentes.
Quando o ano
acabou, ela conta que as crianças estavam felizes, brincando e com muita
vontade de ler e escrever. No entanto, ao chegarem no EF, as rotinas e a forma
de organização do tempo e do espaço não atenderam as expectativas. Mas mesmo em
atividades sem sentido, as crianças começaram a brincar. Durante a atividade
"Ligando formas iguais" - em que as crianças deveriam ligar os
sorvetes iguais, passar o lápis no tracejado dos cones, colorindo-os de
laranja, e colorir os sorvetes da cor que quisessem - , começou a brincadeira
quando uma criança disse: 'quem quer sorvete?' E por meio da construção
coletiva de uma sorveteria, criaram um contexto que deu sentido à atividade.
Salas
heterogêneas
Segundo Silvia Gasparian Colello, professora de
psicologia da educação da USP, em geral a passagem da EI para o EF tem um
significado de ritual. Ela conta que algumas crianças dizem: 'agora, já estou
no EF', porque é algo importante e querem fazer dar certo. Por meio de novos
desafios e aprendizagens, estimulando assim o avanço da criança, esse ritual
pode assumir conotação positiva, e não de perda.
Mas
proporcionar novas aprendizagens é desafiador para o professor que tem uma sala
tão heterogênea no começo do EF, com crianças quase alfabetizadas ou
alfabetizadas, e outras não. Silvia lembra, entretanto, que não existe classe
homogênea em nenhuma circunstância: as pessoas são diferentes. "Isto não
aumentou com a ampliação do EF para nove anos, mas, sim, com a democratização
quantitativa da escola", defende.
Outra cultura
escolar
Para a pesquisadora, uma alternativa é descentralizar, ou seja, dar atividades que possam ser feitas por duplas, por trios ou por grupos de crianças nas quais cada grupo possa desempenhar o seu papel. Isso faz com as crianças se ajudem e o foco de formação da classe se multiplique. "O problema é que a cultura escolar é muito centralizada no professor. Então há crianças que vão bem e outras que vão mal, e não é dada chance para quem tem menos experiência. Dividir tarefas é algo a ser construído e tão importante quanto a alfabetização", diz.
"É preciso
lembrar que o currículo não consiste somente em alfabetizar: há o aprendizado
de matemática, de ciências, de estudos sociais, e tudo isso pode ser feito na
forma de projetos", diz a pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC) e
professora do programa de pós-graduação em Educação da PUC/SP, Maria Malta
Campos, uma das autoras da pesquisa A contribuição da educação infantil de
qualidade e seus impactos no início do ensino fundamental, realizada pela FCC,
que confirmou o que muitos estudos apontam: quem frequentou a Educação Infantil
teve melhores resultados na Provinha Brasil e, se essa educação foi de
qualidade, os resultados refletiam esse efeito também.
Idade polêmica
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A resolução nº 7 do Conselho Nacional de Educação
(CNE), de 2010, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental de nove anos e orienta que o aluno que não tenha 6 anos completos
até 31/03 do ano letivo deve permanecer na Educação Infantil, tem gerado
polêmica e diversas liminares na Justiça. Em jogo estão o entendimento do que
vem a ser a educação nas duas etapas de ensino - a EI e os primeiros anos do
Ensino Fundamental.
Em junho de 2011, Elisa Bekerman foi à Justiça para
que o filho Guilherme, nascido em 06/07/2006, fosse matriculado no 1º ano do
EF. Em São Paulo, a data de corte é até 30/06. Ela argumenta que apenas uma
data não assegura se o seu filho tem condições de ir para o 1º ano. Ela
procurou a Secretaria de Educação, onde prevaleceu a orientação do CNE, e
depois buscou um advogado. "Como a escola não forneceu documento
atestando sua aptidão para cursar o 1º ano do EF, foi preciso laudo de uma
fonoaudióloga e um psicólogo," explica. Hoje, Guilherme está no final do
1º ano. "Fiquei tranquila porque esta escola desenvolve muitas
atividades lúdicas e brincadeiras", diz Elisa.
Para a advogada especializada na área de educação Claudia Hakim, não se trata
de colocar as crianças mais cedo no EF, mas, sim, de fazer prevalecer o direito
de igualdade de tratamento. "As regras mudaram e feriram direitos
constitucionais que garantem a educação das crianças", defende a advogada,
que tem mais de 145 liminares concedidas em mandados de segurança a respeito da
questão.
Já para Vanessa Ferraz Almeida, professora adjunta
da Faculdade de Educação da UFMG, a maioria dos pesquisadores em educação
defende a permanência da criança na Educação Infantil por ser um espaço onde
a brincadeira seria mais facilmente respeitada. Para a pesquisadora, a
maioria das escolas do EF, na prática, não está preparada para as crianças de
6 anos, que dirá de 5. "Mas pensando na criança e não na realidade
prática, até os 10 anos a criança precisa ter sala de aula adequada,
parquinho e o tempo de brincadeira respeitado. Daí, a princípio, não faria
diferença se ela está aqui com 5 anos ou ali com 6 anos".
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