Maria Clara Sodré: 'Meu sonho é que as escolas sejam tão boas que a gente não tenha que existir' - Mauro Ventura / O Globo
Dois cafés e a conta com Maria Clara Sodré
A pedagoga carioca
Maria Clara Sodré é uma espécie de caça-talentos. Seu foco: crianças de 9 a 11
anos superdotadas de baixa renda. Coordenadora do Estrela Dalva
programaestreladalva.org.br, do Instituto Lecca, ela e sua equipe trabalham com
alunos do quarto e do quinto ano do ensino fundamental, selecionados em 50
escolas indicadas pela Secretaria municipal de Educação. Mas a peneira é
rigorosa: a cada ano, dos 2.500 testados ficam 24. Quem entra tem a vida
mudada. Eles são preparados para passar em colégios de excelência, em geral
Pedro II e CAp-Uerj. “A média de aprovação é de 90%”, diz ela, que desde 1991
lida profissionalmente com o tema. Fez doutorado com foco em superdotados na
Columbia University, de Nova York, lançou o livro “Educação de superdotados:
teoria e prática”, coordenou por nove anos o atendimento a superdotados da
Escola Americana e criou no ano 2000 o programa Ismart, que também trabalha com
alunos de excelência de baixa renda (do oitavo e nono anos). Há dias teve
início a seleção de 2016 do Estrela Dalva, que tem patrocínio da Brookfield, do
Instituto Lecca, do Instituto Phi e da Vila Olímpica da Maré, e apoio do Metrô.
REVISTA O GLOBO: Por que investir nesses jovens?
MARIA CLARA SODRÉ: Países do Oriente, como Coreia do Sul, procuram esses alunos
porque sabem que é dessas cabeças que vai sair o progresso do país. Quando não
se dá atenção a eles é como se disséssemos: “Tem uma mina de diamante aqui, mas
prefiro usar o terreno para plantar alface.” Se a escola não estimula, eles se
desinteressam, se entediam, se dispersam. E aí ou ficam deprimidos ou, se são
mais levados, aprontam e são expulsos. Tem até quem tire nota baixa para não
ser visto como nerd. Qualquer criança pode nascer superdotada, mas a de classe
mais alta é mais facilmente identificada e acompanhada. Já na classe baixa
muitos moram em comunidades problemáticas, onde há maneiras de se ganhar
dinheiro fácil, e podem virar lideranças do crime. São cabeças fantásticas que
o país está perdendo.
Como funciona o
programa Estrela Dalva?
Desde 2007 já passaram
216 alunos. Hoje são 60. Durante dois anos, estudam quatro horas por dia aqui.
Têm acesso à biblioteca com 2.500 livros. No primeiro ano, a programação
cultural é intensa, com idas a museus e centros culturais. E exercitam o pensar
diferente. Participam de debates, jogos educacionais e atividades para
desenvolver o pensamento crítico e criativo. No segundo ano, o estudo é mais
forte. Também há oficinas de temas como arquitetura, direito, robótica,
economia, animação e empreendedorismo. Elas ajudam na escolha da faculdade, já
que eles não têm maiores referências profissionais, pois são filhos de
empregadas, porteiros, faxineiras. Os alunos e seus irmãos ganham ainda bolsa
de seis anos da Cultura Inglesa.
Cite exemplos de
ex-alunos e de como a vida deles muda.
Matheus, da Maré, não
queria ir ao Ciep em que estudava. Passou para o Pedro II de São Cristóvão (em primeiro),
para o CAp-Uerj e para o Colégio Militar. Escolheu o CAp e se apaixonou pela
escola, onde no sexto ano tirou sete médias 10. Em 2012, por exemplo, os cinco
primeiros lugares do Pedro II do Centro foram nossos: Mariana, Joyce, Dílson,
Bia e Ellen. Ellen ganhou medalha de ouro na XVII Olimpíada de Astronomia e
Astronáutica e de prata no Canguru de Matemática. A mãe da Joyce, uma doméstica
analfabeta, morava no emprego. A patroa insistiu para que ela aprendesse a ler.
A Joyce ficava olhando os livros no quarto e aos 3 anos aprendeu a ler. Ou
seja, mãe e filha aprenderam ao mesmo tempo. Da nossa primeira turma, de 2007,
já tem gente cursando Direito, Arquitetura, Biologia, Engenharia.
Como são esses
estudantes? Qual o objetivo de vocês?
São crianças precoces,
com facilidade para aprender, obstinadas, persistentes, dedicadas, criativas,
curiosas, críticas. E que enfrentam muitos obstáculos. Tem mãe que liga e diz:
“Meu filho não vai hoje porque estamos deitados no chão, teve tiroteio aqui na
porta de casa.” Trabalhamos para que desenvolvam ao máximo seu potencial. A Bia
se dizia agoniada com seu colégio, “muito fraquinho”. Meu sonho é que as
escolas sejam tão boas que a gente não tenha que existir. Enquanto isso, o que
fazemos é ajudar essas crianças brilhantes, de famílias muito pobres, a não
terem seus talentos desperdiçados
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