COMO JONILDA FERREIRA CONSEGUIU FAZER SEUS ALUNOS CONQUISTAREM 22
PRÊMIOS EM UMA OLIMPÍADA DE MATEMÁTICA QUE MOBILIZA 19 MILHÕES DE JOVENS
Extraído do site :
GRUPO DE ALUNOS DA CIDADE DE PAULISTA, PREMIADOS NAS
OLIMPÍADAS DE MATEMÁTICA (FOTO: MANOEL MARQUES NETO)
“Na
semana que antecedeu o Natal, eu e o fotógrafo Manoel Marques Neto enveredamos
rumo ao alto sertão da Paraíba. Tínhamos como destino a pequena Paulista, uma
cidade com 11.783 habitantes, a 397 quilômetros de João Pessoa, a capital do
estado. Nossa missão era entender um fenômeno. Os estudantes do município
paraibano, encravado no coração do semiárido nordestino, haviam se destacado em
uma olimpíada de matemática, que mobilizou no ano passado 19,1 milhões de
alunos da rede pública em todo o país. Os paulistenses conquistaram 22 prêmios.
Foram cinco medalhas de ouro (um recorde para cidades desse porte), duas de
prata, três de bronze e 12 menções honrosas. Tal resultado foi surpreendente.
Superou, em termos proporcionais, o desempenho obtido pelos jovens entre 9
e 17 anos das principais cidades do Brasil.
À
medida que seguíamos em direção ao interior, o cenário destoava cada vez mais
de um ambiente que supúnhamos propício a um bom desempenho escolar.
Principalmente, em se tratando de uma disciplina como a matemática – o
bicho-papão da estudantada. Em longos trechos do percurso até Paulista, o que
se via era o efeito da maior seca registrada na região nas últimas quatro
décadas. A paisagem parecia ter sido destruída por um imenso incêndio. E foi. E
ainda é. O Sol queima a região com temperaturas que vão além dos 40 graus
nessa época do ano. Não chove, ali, desde outubro de 2011. Então, qual a
explicação para tantas medalhas? Todas as respostas convergiam para um nome:
Jonilda – ou melhor, professora Jonilda. Qual o seu segredo?
Maria
Salete Laurentino gritou, riu e chorou. Fez tudo isso junto e misturado,
repetidas vezes. Enquanto se dedicava a tais manifestações, ligou para todos os
números que constavam da sua lista de contatos, no celular. Se eram muitos? “Só
de irmãos tenho 13”, diz. Tamanha animação era justificável. Salete acabara de
saber que a filha Miriam, de 12 anos, havia sido premiada com uma medalha de
ouro na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, a Obmep, cujos
resultados foram divulgados em dezembro.
A
vitória de Miriam não se resumia ao prêmio. Ela, na verdade, havia superado um
trauma. Poucos meses antes da disputa, a garota nutria pavor por matemática. De
repente, transformou-se. Começou a se dedicar à matéria em três períodos ao
dia. Pela manhã frequentava a escola, à tarde estudava em casa e, à noite, fazia
aulas de reforço. Dormia sobre os livros. Preocupada, a mãe até lhe recomendava
repouso. Qual o motivo da mudança? Miriam diz, em tom de brincadeira: “Foi a
Jonilda que passou a mão na minha cabeça.”
JONILDA FERREIRA, 44, LECIONA MATEMÁTICA DESDE 2002 EM
PAULISTA (PB). QUIETA E TRANQUILA, ELA REVOLUCIONOU A EDUCAÇÃO NA CIDADE.
TRANSFORMOU A DISCIPLINA, O BICHO-PAPÃO DAS ESCOLAS, EM UMA GRANDE BRINCADEIRA.
COMO RESULTADO, OS ESTUDANTES DAS ESCOLAS PÚBLICAS DO MUNICÍPIO CONQUISTARAM 22
PRÊMIOS (ENTRE ELES, CINCO MEDALHAS DE OURO E DUAS DE PRATA) EM UMA OLIMPÍADA
QUE MOBILIZA 19 MILHÕES DE JOVENS EM TODO O PAÍS. “SE A GENTE CONSEGUE
ESTIMULAR A GAROTADA, ELES VÃO ALÉM DO ÓBVIO” (FOTO: MANOEL MARQUES NETO)
O dom
Jonilda Alves Ferreira, de 44 anos, não tem poderes sobrenaturais, mas faz lá
as suas mágicas. Natural de Paulista, leciona matemática desde 2002.
Atualmente, dá aulas para seis turmas do 6° ao 9° ano, na Escola Municipal
Cândido de Assis Queiroga. Na cidade, é identificada como a hospedeira de um
vírus insólito – que disseminou uma febre por números. Os estudantes do
município paraibano transformaram a matemática em uma brincadeira. “O melhor é
que ela pode ser levada para qualquer lugar e nunca quebra”, diz Wanderson
Ferreira, de 11 anos. O garoto já conquistou três medalhas na Obmep: dois
ouros, em 2010 e 2011, e uma prata no ano passado. Adivinha de quem ele é
filho? Da Jonilda.
Não
é simples decifrar o dom de Jonilda. Ela fala em um ritmo pausado, quase sem
variações no tom, como quem manifesta um certo fastio. A verborragia,
definitivamente, não a brindou. Seu comportamento está a anos-luz dos
professores-espetáculo dos cursinhos pré-vestibular. Jonilda é calma – ao
extremo. Tanta serenidade, no entanto, é interpretada de forma peculiar pelas
crianças. “Ela transmite uma afetividade muito grande e isso é importante na
educação”, diz Salete, a mãe de Miriam, também educadora (leciona história).
“As crianças não têm medo ou vergonha de conversar e tirar dúvidas com ela.”
O método
Sim,
existe empatia, mas também há método. Embora não conheça o trabalho dos grandes
gurus globais da educação, Jonilda conta com um repertório variado de
estratégias para dominar a sala de aula. Grande parte dos preceitos de
teóricos como o americano Doug Lemov, autor de Aula Nota 10, ela adota
intuitivamente. “Eu nunca bato de frente com meus alunos”, afirma. “Sempre
tento demonstrar que a turma pode contar com meu apoio.” Esse lado “gente boa”
tem contrapartida. A professora não permite indisciplinas. “Mas isso é fácil evitar: basta manter
as crianças, principalmente as mais ativas, sempre ocupadas”, diz. “Se o aluno
não tiver tempo, ele não causa problemas.”
As aulas de fração
são na pizzaria. De medidas, na farmácia. “Os alunos gostam e precisam ser
desafiados”, diz Jonilda
Jonilda
adora inovar. “Não sou alucinada, mas tenho as minhas ideias.” E não são
poucas. Ela tem como princípio que, para aprender matemática, é imprescindível
vivenciá-la. Assim, as aulas sobre fração são ministradas em uma pizzaria. À
medida que os pedaçinhos são cortados, ela mostra o significado de um oitavo,
um quinto... A farmácia serve de âncora para lições sobre medidas, com base na
dosagem dos medicamentos. Números decimais? Em um posto de gasolina. E o estudo
de estatística nada têm de fictício. Os alunos coletam dados reais sobre a
mortalidade infantil ou a incidência de doenças na população de Paulista. “Ela
sempre foi assim”, diz Jocemar Alves Ferreira, também professora (leciona
história) e irmã de Jonilda. “Sempre gostou de inventar.”
Jonilda
também faz questão de envolver os pais nas lições de casa e não mede esforços
para elogiar o bom desempenho dos alunos. Só não aceita respostas prontas,
plagiadas dos livros, sem escala no raciocínio dos estudantes. “Os alunos
gostam e precisam ser desafiados”, diz. “Se a gente consegue estimulá-los, eles
vão além do óbvio.” É o termo desafio, aliás, que explica em grande parte o
sucesso das olimpíadas entre a garotada de Paulista. Nesse jogo, eles não só
aprendem como se envolvem em uma saudável disputa.
A TURMA DA SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DE PAULISTA (1), QUE
CONTA COM O REFORÇO DE UMA CONSULTORIA EXTERNA; A FAMÍLIA DE JONILDA (2); UMA
DAS AULAS DE REFORÇO, GRATUITAS, NA SUA SALA DE ESTAR (3); O CARRO DE JONILDA,
ADESIVADO COM FOTOS DOS PRÊMIOS ENTREGUES A WANDERSON PELA PRESIDENTE DILMA
(4); WANDERSON, ESTUDANDO (5); O PÁTIO DA ESCOLA DE JONILDA (6); MIRIAM,
THAÍSSA, JOÃO PEDRO, LAURA E DANIELLY, OS MEDALHISTAS DE OURO DE 2012 (7)
(FOTO: MANOEL MARQUES NETO)
A força
Esforço
é outra palavra-chave do bê-á-bá de Jonilda. “Ela não se atém à rotina e isso a
torna especial”, afirma José de Arimatéia Fernandes, professor do Departamento
de Matemática da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e coordenador da
olimpíada na Paraíba. Jonilda ganha R$ 1,2 mil como professora, por 30 horas de
aula semanais. Para complementar o salário, toca um pequeno negócio de
fotografias para eventos. Seu marido, Geraldo, é dono de uma oficina para
motos.
O
orçamento familiar é apertado. Ainda assim, ela não cobra nada por aulas de
reforço de matemática, que oferece para as crianças classificadas na segunda
fase da olimpíada. Essas lições complementares são ministradas todas as noites,
entre 19 e 21 horas, na casa de Jonilda. Este ano, participaram 18 garotos e
garotas, dos quais 13 foram premiados, quatro com medalha de ouro. Em um espaço
exíguo, o grupo se acomoda em mesas cedidas por comerciantes da vizinhança.
Elas ocupam o lugar destinado ao sofá, na frente da TV. Tamanho desprendimento,
porém, nem sempre é bem-visto pelos colegas de magistério. Alguns a criticam
por trabalhar mais e de graça. “Não ligo para os comentários negativos”, diz a
professora. “Não acho justo cobrar por essas aulas e pronto.”
O efeito
O
impacto das aulas de Jonilda irradia pela cidade. Hoje, os destaques nas
olimpíadas não se resumem aos alunos da escola Cândido de Assis Queiroga.
Thaíssa Coelho Farias, de 12 anos, por exemplo, ganhou uma medalha de ouro em
2012. Ela estuda em outro colégio municipal, o José Jerônimo Neto. “Acreditei
que, se os alunos de uma escola conseguiram, eu também poderia”, diz. “Mas não
nego: me inspirei no Wanderson, o filho da Jonilda.” Este ano, Maria Eduarda
Linhares Dunga, de 13 anos, estudante de uma escola da zona rural, também foi
premiada com uma menção honrosa.
Outro
dado surpreendente: a cidade registra uma migração de alunos de escolas
particulares para as públicas. No ano passado, sete garotos se transferiram
para o colégio de Jonilda. O que eles queriam? Se dar bem na olimpíada.
Luciclaudio de Azevedo Júnior, de 12 anos, que já ganhou duas menções honrosas
(2011 e 2012), seguiu esse caminho. A mãe do garoto, Dannielle Garcia, não
concordava com a mudança. Tinha medo do ambiente que o filho encontraria e de
como se relacionaria com os novos colegas. “Existe um grande tabu em relação à
escola pública”, afirma Dannielle. “Eu só cedi porque meu filho insistiu muito,
mas foi a melhor coisa que fiz. Hoje, nem preciso mandá-lo estudar. Ele vai
sozinho e gosta de todas as matérias.” Aqui, nota-se outro sintoma da febre que
se alastra pelo município: embora o foco da brincadeira seja a matemática, os
alunos em geral apresentam um rendimento mais satisfatório em todas as
disciplinas. “O que melhora não é a habilidade de fazer contas”, diz Jonilda.
“É a capacidade de raciocínio. E isso serve para as aulas ou qualquer outra
coisa.”
A
busca por medalhas na competição nacional, por estar restrita a escolas
públicas, também não faz distinção de classes sociais. O pai de Danielly Mendes
da Silva, de 13 anos, é aposentado. A mãe trabalha como merendeira, além de
engomar roupas em Paulista. Pois a garota conquistou uma medalha de ouro em
2012. “Eu chorei tanto que fiz toda a cidade chorar”, diz Benedita Alves, a
mãe. “Agora, minha filha só quer saber de estudar e fazer a faculdade de
engenharia. Ela parece um pacote de sonhos.”
A abertura
A
olimpíada do Impa embute outros estímulos. Os estudantes premiados com medalhas
ganham uma bolsa de estudos de R$ 100 mensais (não é pouco dinheiro, em muitos
pontos do país) e participam por um ano de um curso de iniciação científica. No
caso de Paulista, os estudantes assistem a essas aulas, realizadas todos os
meses, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), a 265 quilômetros de
distância. A garotada sai do sertão às 4 horas, para regressar somente à noite.
“No campus, eles têm contato com um novo mundo e ficam encantados”, diz
Jonilda. Ela acompanha os garotos em todas as viagens. “As aulas também são
muito boas, e isso tudo ajuda a abrir a cabeça dos meninos.”
Não
por acaso, em uníssono, os premiados afirmam que querem cursar uma faculdade. A
maioria tem preferência por cursos de exatas, com destaque para a engenharia.
Essa opção soa até estranha. Como se sabe, há no país um tremendo vazio de
engenheiros. A indústria estima que esse déficit esteja na casa dos 150 mil
profissionais. Enquanto o Brasil diploma 40 mil engenheiros por ano, a Rússia
forma 190 mil, a Índia, 220 mil e a China, 650 mil. Um estudo recente da
Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) mostrou que a falta de
competência em matemática é ainda um dos principais problemas apresentados por
funcionários contratados regularmente por 604 empresas fluminenses.
Além de Jonilda
O sucesso da matemática em Paulista não se limita à sala da aula de Jonilda ou
ao efeito dominó da olimpíada. A cidade registra avanços contínuos na área de
educação. Em 2000, a maioria dos professores do município não tinha sequer
graduação. Hoje, a maior parte é pós-graduada. A Secretaria de Cultura e
Educação contratou uma consultoria, chamada Foco, para auxiliar na gestão dos
problemas das escolas. A empresa também identifica cursos e programas
oferecidos pelo Ministério da Educação que interessem à cidade.
Há,
contudo, muito a ser feito, e faltam recursos. A quase totalidade da receita de
Paulista vem do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Esse dinheiro está
minguando. À medida que o governo amplia as reduções de IPI para estimular a
indústria, o bolo do FPM diminui. É diminuta ainda a oferta de empregos no
município paraibano. Cerca de 2 mil famílias (perto de 4 mil pessoas) dependem
do Bolsa Família. Para complicar, muitos jovens paulistenses migram para São
Paulo e Rio de Janeiro, para vender redes e mantas produzidas na vizinha São
Bento. O problema: quando retornam, levam as drogas para o agreste.
Esses
problemas só acentuam o valor da revolução dos números em curso na cidade. Ela
está se mostrando muito mais forte que as barreiras econômicas ou a penúria
material vigente nas salas de aula – elas só têm carteiras, nem todas em bom
estado, uma lousa e algumas lâmpadas que pendem do teto. Resta saber até onde
pode chegar.
Nessa
luta, Jonilda pode ser uma baixa. Ela recebeu uma oferta para trabalhar em uma
escola privada de Campina Grande, que também cederia uma bolsa de estudos para
seu filho. A professora não esconde o desejo de fazer um mestrado e, como
treinadora dos atletas dos números, não lhe sobra tempo para isso. Em breve,
pode deixar Paulista. Será possível clonar Jonildas e o grupo de professores do
município? E, já que estamos nisso, não só espalhá-los pelo sertão mas por todo
o país?
É
sabido e comentado que a educação é o maior desafio do Brasil. Para isso, é
preciso que os recursos jorrem, como em qualquer projeto de infraestrutura. Mas
a espantosa revolução dos números no sertão da Paraíba demonstra que o sucesso,
em educação, começa no professor. Em sua capacidade de inspirar, desafiar,
guiar e reconhecer os alunos. Parece lógica a extrapolação de que o principal
investimento que o Brasil pode fazer é encontrar, contratar, inspirar, treinar
e reconhecer gente como a dona Jonilda. Muitas donas
Jonildas.
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