Extraído do site do Jornal “A Folha de SP” , do caderno Equilíbrio de
12/03/2.013 : http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1244251-a-familia-esta-sob-o-governo-das-criancas-afirma-pesquisadora.shtml
A família está sob o governo das
crianças, afirma pesquisadora
JULIANA VINES
DE SÃO PAULO
Theodoro tem dois anos e 11 meses e o
apelido de "Theorremoto", ganho às custas de muita birra. "Não
muito orgulhosa disso", a mãe, a estilista Marina Breithaupt, 32, diz que
o menino manda nela, no pai e na irmã de 11 anos.
"Saímos quando ele quer, assistimos
ao que ele gosta na TV. Ele quer tudo antes da irmã e decidiu que não dorme
mais na cama dele, só na nossa", conta a mãe.

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Theodoro,de
dois anos e oito meses, no prédio onde mora, em Campinas
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Se ouvir um não, o menino "faz
escândalo, vira um inferno". A família deixou de ir a shopping porque Theo quer tudo que vê.
E só vai a restaurante que tem parquinho: um dos pais brinca com ele enquanto o
outro come.
A última do garoto é não querer ir à
escola. "Já acorda dizendo que não vai. Num domingo, resolveu que
queria ir", diz Marina. "Sou rígida, mas acabo cedendo para evitar
problemas. Ele tem personalidade dominadora."
Ele e uma geração inteira de pequenos
ditadores, na
explicação de Marcia Neder, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e
Educação da USP e autora do livro "Déspotas Mirins - O Poder nas Novas
Famílias" (Zagodoni, 144 págs., R$ 34).
"Vivemos uma 'pedocracia'", diz, dando nome ao fenômeno das
famílias sob o governo das crianças. "Há 50 anos, elas não tinham
querer. Agora, mandam."
Segundo Neder, estamos no ápice da
tirania infantil.
"Muito se fala sobre declínio de poder paterno e ascensão do materno.
Discordo. Quem ganhou poder nas últimas décadas foram os filhos",
diz.
A falta de limites é sinal da derrota dos
pais, na visão dela. "A criança foi a grande vitoriosa do século 20."
E não precisa ser mandão para manter o
reinado. Mesmo sem espernear, os filhos têm as vontades atendidas e a rotina da
casa organizada em função deles. "O adulto é um satélite em volta da criança", diz Neder, que
considerada urgente um esforço pela retomada do poder adulto. "Vamos pagar o preço de ver esses tiranos crescidos."
Por que é tão difícil colocar
limites no seu filho
JULIANA VINES
DE SÃO PAULO
Os pequenos tiranos de hoje são resultado
do encontro de duas gerações sem limites, diz Tania Zagury, mestre em educação e
autora de "Limites Sem
Trauma" (Record).
"Quem está criando filhos agora são
os que já tiveram liberdade na infância e estão frente a uma situação que não
vivenciaram: os filhos deles também querem fazer de tudo. A liberdade da
criança acaba tirando a dos pais."
Zagury fez um estudo com 160 famílias no
início dos anos 1990, quando já identificava o surgimento da tirania infantil.
"Os pais dos anos 1980 tinham sido criados de forma dominadora e queriam
uma educação liberal."
Entre os anos 1970 e 1980 a criança se
tornou ator da história, segundo Mary Del Priore, organizadora do livro "História das
Crianças no Brasil" (Contexto).
A tendência começou depois da Segunda
Guerra. Ao mesmo tempo, surgiram leis de proteção à infância, jovens ganharam
visibilidade no cinema e na publicidade e as famílias diminuíram.
"A mulher [que trabalha fora e começa
a tomar pílula] passa a querer ter menos filhos para criá-los bem. E a criança
ganha lugar como consumidora. Há uma transformação no papel dos pais",
afirma a historiadora.
CRISE DE AUTORIDADE
O problema é que a balança foi toda para o
outro lado : da rigidez à frouxidão, analisa o psicanalista Renato Mezan,
professor da PUC-SP. "Por um lado, é um avanço social, há mais diálogo na
família e mais decisões consensuais. Mas, por outro, os pais têm medo de
exercer a autoridade legítima. É uma crise de autoridade generalizada."
Há também uma inversão de papeis, segundo
a pedagoga Adriana Friedmann, doutora em antropologia e coordenadora do Nepsid
(Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento).
"Há uma 'adultização' precoce e,
ao mesmo tempo, um prolongamento da infância", diz. "Não dá para
culpar só os pais. Todos são vítimas da tendência sociocultural. As crianças
estão expostas a um grande número de estímulos e influências da mídia."
Para a psicanalista Marcia Neder, os
pais se sentem obrigados a mimar os filhos e há muitas exigências em torno de
um ideal da mãe perfeita. "Fica difícil dizer 'não' em uma sociedade que
trata a criança como um deus."
A blogueira Loreta Berezutchi, 29, sente
na pele as cobranças do que ela chama de "filhocentrismo". Loreta é
mãe de Catarina, 3, e Pedro, 5. O menino não dá muito trabalho, mas Catarina...
"Ela está sempre batendo o pé. Empaca
quando não quer sair de casa e quer escolher a roupa que vai usar. Às vezes,
quer blusa de frio no calor e é difícil fazê-la mudar de ideia", conta.

A blogueira Loreta Berezutchi com a filha caçula, Catarina, 3, no playground do condomínio onde moram, em São Paulo
Além de comprar "as brigas que valem
a pena" com a filha (como não deixá-la viver só de bolacha e iogurte),
Loreta tenta não ser guiada pela concorrência que há entre mães blogueiras para
ver quem é a "mais mãe", ou seja, a que mais paparica sua prole (ela
escreve no www.bagagemdemae.com.br).
"Na hora de apontar o dedo, todo
mundo aponta. 'Ah, meu filho só come comida saudável e o seu toma
refrigerante'. Você se sente culpada por não ser o modelo de mãe que cozinha
para o filho, dá água mineral etc.", diz.
Ela admite que sua vida hoje gira em torno
dos rebentos e acha que faz parte do pacote. "Eu estava preparada para
isso quando decidi ser mãe. Mas faz falta ter uma vida social que não os
inclua."
Enquanto a criança ainda é um bebê, é
normal que a vida da família seja pautada pelas necessidades dela, de acordo
com Zagury. "Mas, a partir dos três, quatro anos não precisa ser
assim. Os pais devem dar proteção aos filhos, não sua própria vida."
MAMÃE EU QUERO
Encontrar o equilíbrio pode ser complicado quando a criança tem entre dois ou três anos, aponta Friedmann. "Elas estão na fase de se descobrirem como pessoas com identidade única. Nesse período, há uma necessidade da afirmação do eu, por isso experimentam um jogo de força com os adultos."
É fundamental os pais terem clareza sobre
quais regras vão impor aos filhos. Só assim conseguirão ser firmes.
"Os limites devem ser colocados
na primeira infância, quando se constroem as bases da personalidade",
acrescenta Friedmann.
A psicopedagoga Maria Irene Maluf, membro
da Associação Brasileira de Psicopedagogia, lembra que regras dão segurança.
"A opinião da criança não deve ser ignorada, mas ela não sabe escolher o
que é melhor para ela. Ninguém nasce autônomo."
No fundo, mesmo os mais rebeldes gostam de
saber até onde podem ir, complementa a também psicopedagoga Betina Serson. Para
quem tem um déspota mirim em casa, ela recomenda começar a disciplina
estabelecendo uma rotina (veja mais orientações ao lado).
"A ideia de que colocar limites pode
ser danoso à criança é 'idiota'", afirma Mezan. Segundo ele, a
inexistência de regras gera ansiedade dos dois lados.
"Qualquer renúncia ao prazer
imediato passa a ser vivida como uma frustração insuportável pela criança.
Muitas vezes, porque seu desejo é logo satisfeito, ela acaba valorizando pouco
o que tem", afirma.
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Editoria de Arte/Folhapress
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