Extraído do site : http://super.abril.com.br/cotidiano/distraido-pelo-barulho-441352.shtml
Audição
Distraído pelo barulho
Desatenção e notas baixas na escola não são sinônimo
de falta de inteligência. Às vezes o problema está na incapacidade de lidar com
barulho, mas poucos médicos sabem disso.
por Fábio Peixoto
Por mais que estudasse, a paulista Glaudys Garcia não
tirava notas maiores que 4. A mãe e os professores se esforçavam para lhe
ensinar coisas simples, mas ela não prestava atenção em nada. Era insegura,
distraída, tinha medo de falar ao telefone e não se concentrava nos livros.
Acabou se isolando dos colegas. Depois de passar por vários médicos e
psicólogos, sua mãe tentou um último recurso : levou-a a uma fonoaudióloga.
Em três meses Glaudys estava curada. Hoje ela tem 13 anos e no seu último
boletim não há nenhuma nota menor do que 6.
Pode parecer estranho, mas o problema era de audição. A menina, assim como outras centenas de milhares de
crianças, sofria de desordem do processamento auditivo central, ou DPAC, um distúrbio reconhecido há apenas quatro anos que
raramente é diagnosticado pelos médicos, mas pode estar afetando milhões
de brasileiros. Em geral, a disfunção surge da falta de estímulos sonoros
durante a infância. As estruturas do cérebro que interpretam e hierarquizam
os sons se desenvolvem nos treze primeiros anos. Até essa idade, as notas
musicais, as palavras e os barulhos vão lentamente nos ensinando a lidar com a
audição. Justamente nessa fase, Glaudys pode ter tido problemas no ouvido
que atrapalharam a entrada de sons. Acabou formando mal o seu sistema
auditivo. Todos os inconvenientes pelos
quais passou eram conseqüência disso.
Um dos principais sintomas da DPAC
é a dificuldade em manter a concentração num ambiente ruidoso. “Quem sofre desse mal não consegue prestar
atenção em uma coisa só”, diz a neurologista Denise Menezes, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Na sala de aula, não separa o que a professora diz do latido de um
cachorro do lado de fora”, acrescenta.
A DPAC é comum nas grandes cidades, onde o barulho excessivo prejudica a percepção de estímulos
sonoros e a poluição provoca alergias que bloqueiam a orelha com muco. Crianças que têm
inflamações freqüentes nos ouvidos também podem sofrer da desordem. O pior é que, por ser pouco conhecida, a
DPAC costuma ser confundida com falta de inteligência ou com alguma deficiência
mental. Mas, como mostra o caso de Glaudys, uma coisa não tem nada a ver com a
outra.
O mundo é barulhento demais
Para uma vítima de DPAC, o mundo se transforma numa
interminável confusão de barulhos desconexos e embaralhados de onde
é quase impossível pescar os sons que realmente interessam (veja infográfico). O ar-condicionado vira um zunido
infernal que se sobrepõe às vozes dos outros. O telefone torna-se uma máquina
indecifrável, porque o cérebro não consegue decodificar a fala do interlocutor
em meio à distorção normal de qualquer ligação. Também não é fácil
entender a entonação das frases. Uma pergunta pode soar como uma afirmação e
uma ironia acaba parecendo a frase mais séria do mundo. Os amigos acabam se
afastando, já que ninguém gosta de conversar com alguém que não entende o que
os outros dizem.
A fala também é prejudicada. “Os processos de
linguagem se desenvolvem ao mesmo tempo que os de audição”, explica a
fonoaudióloga Liliane Desgualdo, da Universidade Federal de São Paulo, pioneira
no diagnóstico da DPAC no Brasil. “Uma criança pode não aprender a falar bem se não souber
lidar com os sons.” A leitura acaba igualmente afetada. “Mesmo num lugar
silencioso, uma pessoa com DPAC encontra problemas em entender um texto porque,
para tanto, é necessário associar as palavras ao som que elas têm”, conta
a psicopedagoga Ana Silvia Figueiral, de São Paulo. Todo esse esforço para
realizar atividades corriqueiras é demais para o cérebro. Chega uma
hora que ele não resiste e “desliga”. Por isso, as vítimas do problema são
sempre muito distraídas.
Enfim, tudo se torna uma tarefa dura. O ouvido
até percebe os sons, mas o cérebro, iludido pela falta de estímulos na
infância, não sabe o que fazer com eles. Os
médicos geralmente não percebem a disfunção porque ninguém desconfia que
sintomas tão variados possam estar todos ligados à audição, menos ainda quando
constatam em exames que o ouvido funciona normalmente. E, se o diagnóstico não
é feito, não há como curar (veja quadro à direita).
Reaprendendo a escutar
A DPAC só foi reconhecida nos Estados Unidos em 1996,
quando a Associação Americana de Fala, Linguagem e Audição chegou a um consenso
sobre seus sintomas e suas formas de tratamento. Ainda se sabe pouco sobre as
causas – a falta de estímulos sonoros está entre elas, mas suspeita-se também
de razões genéticas e de má alimentação. “Uma coisa é certa: a desordem
está relacionada à classe social”, afirma Liliane. Ela fez uma pesquisa em
colégios de São Paulo e constatou que, nas escolas particulares, entre 15% e
20% das crianças têm DPAC em algum grau. Nas escolas públicas, onde há uma
proporção bem maior de alunos pobres, o índice chega a alarmantes 70%. A razão
disso é que crianças mais pobres geralmente ouvem menos música, têm mais
inflamações no ouvido, menos acompanhamento de pediatras e psicólogos e se
alimentam pior, o que também pode prejudicar a formação do sistema auditivo.
Infelizmente, a imensa maioria delas carrega esse estorvo para a idade adulta
sem ao menos desconfiar que a cura pode estar ao alcance da mão.
Para Saber Mais
Processamento Auditivo Central – Manual de Avaliação, Liliane
Desgualdo Pereira e Eliane Schochat, Editora Lovise, São Paulo, 1997.
Algo mais
Se um bebê toma mamadeira deitado, existe a perigosa
possibilidade de o leite ser acumulado atrás dos tímpanos, prejudicando o
desenvolvimento das vias auditivas. Todo o cuidado é pouco, porque a
capacidade de receber sons se forma até os 2 anos.
A culpa é do ouvido
Alergias na infância podem acabar prejudicando a
atenção e o desempenho escolar.
Mal urbano
Nas grandes cidades é comum crianças terem
alergia causada pela poluição. Dependendo do caso, o muco se acumula atrás dos
tímpanos. Essa é uma das causas de problemas no processamento auditivo.
Lápis insuportável
Quem teve problemas de audição na
infância pode ficar com os neurônios do tronco cerebral mal conectados. O
resultado é que sons triviais, como o de um lápis que cai, tornam-se
insuportáveis. Fica impossível concentrar-se numa prova.
Anos cruciais
Até os 7 anos, se desenvolve a parte auditiva do
tronco cerebral, importante para localizar a origem dos sons e notar um barulho entre vários.
Bem formado
Aos 13 anos, um menino saudável completa o
desenvolvimento auditivo. Os neurônios de suas estruturas já são muitos e estão
bem interligados.
Tudo é difícil
Situações banais viram obstáculos para um deficente
auditivo.
Sem graça
Por não notar sentidos escondidos, o deficiente
auditivo é incapaz de entender muitas piadas.
Falso rebelde
Na escola, como ele não é capaz de ordenar os sons, fica
difícil entender as aulas. O professor muitas vezes acha que o menino desafia
sua autoridade, pois não consegue seguir atividades simples.
Onde está ?
Vítimas do distúrbio não conseguem saber de onde vem
um som. É que o cérebro não pode calcular sua origem, uma operação que
exige o processamento simultâneo do que ouvem os dois ouvidos.
O que faço ?
O menino deficiente não sabe o que fazer com a bola
porque não consegue entender o que os colegas gritam. Ele se desconcentra nos
momentos que exigem a hierarquização dos sons.
Como funciona o tratamento
Apesar da gravidade do problema, a DPAC
tem cura.
Uma das principais responsáveis pela pesquisa da
terapia para o distúrbio no Brasil, a fonoaudióloga Liliane Desgualdo conta que
o tratamento consiste em dar às pessoas os sons que elas deveriam ter ouvido
durante as fases de desenvolvimento do processamento auditivo. Mesmo após os 13
anos, as áreas auditivas do cérebro podem ser aperfeiçoadas, desde que sejam
submetidas a uma grande quantidade de estímulos. Uma das atividades
é fechar o paciente em uma cabine e submetê-lo a vários sons misturados,
acustumando-o aos poucos a distinguir um do outro. A terapia dura de seis
meses a um ano.
A equipe de Liliane, uma das poucas especializadas no
assunto no país, tem conseguido curar 80% dos pacientes que chegam às suas mãos – dos 20% restantes, pouquíssimos não apresentam
alguma melhora.
Além do tratamento fonoaudiológico,
é importante que haja também um acompanhamento psicopedagógico. "Os maiores danos da DPAC são na auto-estima.
Depois de curado, um sujeito pode ainda se achar incapaz", alerta Ana
Silvia. Afinal, não é fácil para um ex-paciente se acostumar com a idéia
de que é inteligente depois de ter passado décadas acreditando que não é.
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