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Mitos que perpassam o tema das altas habilidades / superdotação
A partir do que foi explicitado anteriormente, percebe-se a existência de
discordâncias entre pesquisadores no que diz respeito a termos, conceitos e
significados quando a pauta são as altas habilidades / superdotação. Talvez
essa multiplicidade de ideias leve ao surgimento de dúvidas e posturas
equivocadas quando a discussão envolve o indivíduo superdotado.
Segundo Winner (1998), os mitos e mal-entendidos aparecem nas mais variadas
áreas de estudo, mas a ênfase de seu trabalho é no tema da superdotação. A
autora define brevemente um mito como uma "suposição fortemente
mantida" (p. 14) e identifica nove mitos que perpassam o tema em questão.
Segundo o Dicionário de Filosofia (Russ, 1994), um mito é uma
"representação coletiva muito simplista e muito estereotipada, comum a um
grupo de indivíduos" (p. 187). Rech e Freitas (2005) apontam que um mito
surge no imaginário popular na tentativa de buscar uma compreensão dos
mistérios da natureza física e sobrenatural. Outros autores que também citam,
em seus trabalhos, os mitos e crenças envolvendo o tema das altas habilidades /
superdotação são Maia-Pinto e Fleith (2002), Alencar e Fleith (2001),
Extremiana (2000), Guenther e Freeman (2000).
Neste momento, a intenção é arrolar brevemente alguns mitos e crenças que
são mais citados na literatura. Primeiramente, serão abordados cinco dos nove
mitos identificados por Winner (1998). Em seguida, será analisada qual seria a
concepção correta que substituiria o mito em questão. Também serão analisados
alguns mitos e crenças propostos em trabalhos de outros autores. Posteriormente,
será feito um paralelo com alguns trabalhos publicados na atualidade que,
abordam, de alguma forma, as questões que serão propostas aqui. Os mitos serão
enumerados não por ordem de importância ou prevalência na literatura, mas,
simplesmente, por uma questão de organização.
Mito 1 – A pessoa com altas habilidades destaca-se em todas as áreas do
currículo escolar
A ideia implícita nesse mito, segundo Winner (1998), é a de que a criança
que foi identificada como superdotada possui uma capacidade intelectual geral
que faz com que essa criança seja brilhante e se destaque em todas as áreas.
O argumento que contraria esse mito, amplamente citado na literatura
encontrada, é o de que a superdotação numa determinada área, como a
matemática, por exemplo, não implica necessariamente numa superdotação em
outras áreas como o português e as ciências. Mas, muito pelo contrário, é até comum encontrar
superdotados numa determinada área que apresentam dificuldades e até distúrbios
de aprendizagem em outras. Alencar (2001) afirma que é comum haver
uma discrepância entre o potencial de um indivíduo (aquilo que ele é capaz de
realizar e aprender) com o seu desempenho real (aquilo que ele vai realmente
demonstrar que conhece).
Mito 2 – Todo indivíduo superdotado tem um QI elevado
Esse mito traz a suposição implícita de que qualquer criança superdotada
(independentemente da área na qual o talento foi identificado) deva apresentar
um QI (Quociente Intelectual)2 elevado.
Essa ideia é logo descartada ao levarmos em consideração a existência dos
chamados idiots savants. Winner define-os como: "indivíduos
frequentemente autistas, com QIs na extensão de retardo e habilidades excepcionais
em domínios específicos". (p. 16). Além desses casos específicos, existem
crianças extremamente superdotadas nas artes e na música sem apresentarem um QI
excepcionalmente elevado, como ressalta Winner (1998). Percebe-se que a ideia
de superdotação relacionada com QI é aquela que ainda vislumbra a inteligência
como uma instância fixa e pré-determinada, como uma "inteligência
geral" que pode ser medida e quantificada por um valor. É sabido que os
testes de QI medem somente algumas habilidades humanas, mais especificamente
aquelas relacionadas à linguagem e aos números.
Mito 3 – A superdotação é inata ou é produto do ambiente social
Esse mito, que foi abordado tanto por Winner (1998) quanto por Guenther e
Freeman (2000), envolve duas concepções que, atualmente, quando separadas, são
consideradas incompletas e equivocadas. A primeira delas é aquela na qual a
superdotação é vista como inata ao indivíduo, relacionada com a genética. Ou
seja, ou se nasce superdotado ou não. Já a segunda concepção é aquela que
preconiza somente o papel do ambiente e da influência social na constituição da
inteligência. Ou seja, a ideia de que a superdotação é uma questão de
treinamento por parte de professores e pais, e, se a criança nasce num ambiente
que lhe proporciona boas condições de estudos e estímulos às habilidades,
então, a superdotação em determinada área poderá ser desenvolvida.
A concepção mais aceita na atualidade é a de que a habilidade e o talento
devem existir em algum grau no indivíduo, mas que só essa existência não é
suficiente para que a superdotação se desenvolva. Para isso, é necessário
muito esforço, treino e motivação (Greenfield e cols., 2006; Schraw, 2006).
Ao abordar a questão do desenvolvimento da inteligência, Halpern (2006)
afirma que o biológico e o cultural influenciam-se mutuamente, de forma
cíclica, acrescentando ainda que não existe um fator que seja mais importante
do que o outro.
Mito 4 – O indivíduo superdotado também é psicologicamente bem ajustado
A ideia implícita nesse mito é a de que as crianças superdotadas são
aquelas vistas como populares, bem ajustadas, esbanjando saúde física e
psicológica. Entretanto, vários são os autores que destacam o quanto essas
crianças podem ser emocionalmente instáveis, ou pelo fato de não poderem ser quem
realmente são, na tentativa de se igualarem aos demais (o que pode ocasionar
uma angústia significativa e até a perda da identidade), como pontua Novaes
(1979), ou pelo fato de serem ridicularizadas pelos pares ou, até mesmo, pelo
fato de serem ainda emocionalmente imaturas para lidar com as questões que já
conseguem compreender racionalmente. Dentre algumas
das características socioemocionais dos superdotados que podem ser motivo de
preocupação e de maior atenção por parte dos familiares e profissionais que os
rodeiam, Alencar (2007) cita : assincronia entre distintas dimensões do
desenvolvimento; perfeccionismo excessivo ; hipersensibilidade e
sub-rendimento.
Mito 5 – As crianças superdotadas se tornam adultos eminentes
Ideia equivocada de que a
superdotação determina uma vida futura de sucesso e felicidade certos, conforme Alencar e Fleith
(2001), Guenther e Freeman (2000) e Winner (1998).
Winner (1998) afirma que "muitas crianças superdotadas, especialmente
os prodígios, malogram, enquanto outras acabam por se dedicar a outras áreas de
interesse" (p. 18). Além disso, a autora acrescenta que também existem
muitos adultos eminentes que não foram prodígios ou superdotados na infância.
Guenther e Freeman (2000) afirma que a dotação é algo que o indivíduo traz em
potencial quando nasce, mas, para ser desenvolvida, deve ser trabalhada ao
longo da vida, a partir das interações do indivíduo com seu ambiente físico,
psicológico e social. Ou seja, apenas a dotação e o talento, por si sós, não
garantem o desenvolvimento pleno de uma superdotação. É necessário estímulo do
ambiente e muita dedicação, motivação e persistência do próprio indivíduo.
Schraw (2006) acredita que a superdotação seja construída e afirma
"experts become experts slowly trough years of hard work, deliberate
practice, and guidance from other experts" (especialistas tornam-se
especialistas lentamente, com o passar dos anos e através de um árduo trabalho,
prática constante e orientação de outros especialistas) (p. 250).
Mito 6 – As pessoas com altas habilidades provêm de classes socioeconômicas
privilegiadas
Tal mito foi citado pelo documento elaborado pelo MEC, Programa de
Capacitação de Recursos Humanos do Ensino Fundamental: Superdotação e Talento, (Brasil,
1999). Constitui uma crença equivocada de que somente aquelas crianças que
provêm de famílias de classes mais abastadas terão condições de serem
estimuladas e de poderem desenvolver seus talentos Contrariando tal crença, o
fato verificado por vários pesquisadores é de que, mesmo nas camadas menos privilegiadas
socioeconomicamente, é possível e frequente encontrar crianças brilhantes em
alguma área da inteligência (Antipoff, 1992). O que não pode deixar de ser dito
é que a necessidade de estímulo é muito importante, podendo ser decisiva no
desenvolvimento futuro desses indivíduos. Por isso a necessidade de identificar
o quanto antes esse talento para que as habilidades não se percam e, mais
ainda, para que esses indivíduos possam direcionar seus talentos e seu
"furor" de inteligência a fim de produzirem resultados positivos e
aprovados socialmente, de forma que possam contribuir para a comunidade da qual
fazem parte.
Mito 7 – Não se deve identificar pessoas com altas habilidades
Essa crença remete à ideia de que não há vantagens em identificar as pessoas
com altas habilidades (Alencar, 2001). Rech e Freitas (2005) rebatem esse mito
afirmando que é fundamental os professores saberem identificar seus alunos
talentosos, de forma que possam proporcionar meios de encaminhá-los para um
atendimento especializado, visando ao aprimoramento de suas habilidades.
Do contrário, se não forem identificados, como poderão ter suas necessidades
educacionais atendidas ?
Mito 8 – As pessoas com altas habilidades não precisam de atendimento
educacional especial
A ideia implícita nessa crença é a de que, por ser superdotado, tudo é
muito fácil para o indivíduo e, dessa forma, para que proporcionar um
atendimento diferenciado ? Será que esse aluno apresenta necessidades
educacionais especiais ?
O que é encontrado na literatura vai em direção contrária a essa ideia. Os pesquisadores da área afirmam
que existe necessidade de essas crianças serem identificadas o quanto antes e
que um atendimento diferenciado é essencial a esses indivíduos para que os
talentos não sejam desperdiçados e para favorecer não só o pleno
desenvolvimento dos talentos em questão, mas, também, o pleno desenvolvimento
emocional e psicológico dessas crianças (Alencar, 2007; Antipoff,
1992; Freeman & Guenther, 2000; Guenther & Freeman, 2000; Maia-Pinto
& Fleith, 2002; Rech & Freitas, 2005).
Em uma pesquisa recente, realizada no Rio Grande do Sul / Brasil, para
investigar os mitos que envolvem os alunos com altas habilidades prevalecentes
na concepção dos docentes do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública
estadual, constatou-se que a maioria dos professores entrevistados (mesmo tendo
participado de algumas palestras informativas sobre o tema das altas
habilidades / superdotação) mantinha algumas ideias deturpadas sobre o
indivíduo talentoso. Dentre as mais significativas, destaca-se a concepção de
que as altas habilidades são uma característica exclusivamente genética,
provinda das classes socioeconomicas privilegiadas, além da ideia de que tudo é
muito fácil para os talentosos, o que cria a expectativa de que apresentarão
desempenho superior em todas as áreas de aprendizagem. Mas o fato mais
interessante encontrado pelas pesquisadoras foi o de que a única professora que
não tinha participado do curso de capacitação sobre superdotados nos anos
anteriores incidiu em 60% dos mitos. As demais apresentaram apenas 20% de
incidência. As autoras verificaram que a maioria dos professores alterou
algumas de suas crenças deturpadas sobre os alunos superdotados a partir do
curso que lhes foi proporcionado pela escola. Ou seja, percebeu-se que uma
das formas de ultrapassar as ideias e crenças equivocadas sobre as altas
habilidades / superdotação é fornecendo informações corretas e cursos de
formação continuada para os professores (Rech & Freitas, 2005).
Maia-Pinto e Fleith (2002) realizaram uma pesquisa para investigar qual era
a percepção dos professores de escolas públicas e particulares de Brasília
sobre alunos superdotados. Verificaram que, apesar de os docentes acreditarem
na real importância que a escola desempenha na educação do aluno com altas
habilidades, esses professores relataram nunca terem trabalhado com alunos
superdotados. Ou seja, não realizavam qualquer trabalho no sentido de
identificar ou atender de forma diferenciada tais alunos. Concluiu-se que os
profissionais que lidam com a educação apresentam um conhecimento superficial e
incompleto do aluno com altas habilidades, além de não contarem com uma
orientação focada nas práticas educacionais voltadas para essa clientela.
Percebe-se que a falta de informação também desfavorece o desenvolvimento de
práticas adequadas a essas crianças. E não há como fugir dos mitos que
perpassam o tema das altas habilidades / superdotação nesse sentido. Se não
fosse a crença de que os superdotados não necessitam de um atendimento
educacional especial, será que os professores das escolas pesquisadas no estudo
acima teriam lidado com alunos superdotados em suas salas de aula ? Ou será que
não há um embasamento que os auxilie neste sentido ? De acordo com Maia-Pinto e
Fleith (2002), "a falta de uma definição de superdotação por parte do
professor limita as chances de uma criança ter o seu potencial desenvolvido ou
de ser indicada para algum programa especial".
Considerações Finais
Apesar de as diretrizes legais, assim como os Parâmetros Curriculares,
atentarem para os alunos com altas habilidades há algumas décadas, o que se percebe na prática é que somente as leis não bastam
quando o assunto é a superdotação. É necessário ir além do que está definido no
papel e que sejam realizadas ações concretas: maior conscientização das escolas
e comunidades, cursos de capacitação continuada para professores, palestras
informativas etc. para que os mitos sejam amenizados ou até mesmo superados, e
para que o atendimento a esta clientela não seja prejudicado ou pela falta de
informação, ou pela informação equivocada (como, por exemplo, de que o
superdotado não necessita de atendimento especial).
Este é um tema de grande relevância, principalmente, levando-se em conta
que há a necessidade de medidas de apoio e atendimento eficazes aos
indivíduos que se destacam por apresentarem um potencial superior quando
comparados com outros de mesma faixa etária ou nível de desenvolvimento.
Assim, as informações abordadas e discutidas ao longo deste estudo podem colaborar
para elaboração e implementação de atividades e programas voltados aos
indivíduos com altas habilidades / superdotação, desmistificando ideias
deturpadas e favorecendo uma educação mais incisiva e eficaz para que esses
indivíduos tenham suas necessidades educacionais atendidas de fato.
Referências
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Claudia, muito interessante este tema que você trouxe sob o olhar de importantes estudiosos, pesquisadores do assunto. Quantos mitos permeiam os professores e quão prejudicial isto é para o desenvolvimento do aluno. Uma lacuna nos cursos de pedagogia que eu espero, esteja mudando.
ResponderExcluirBeijo