quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Cada vez + inteligentes? Efeito Flynn




Edição 154 - Mai/04

Capa da Revista Galileu

Cada vez + inteligentes?
Edição 154 - Mai/04

Você já fez um teste para medir sua inteligência? Muita gente foge dessas avaliações por temer comparações desagradáveis. Aqui vai uma bem agradável: se você, como 85% da população, possui uma inteligência mediana, estaria incluído no seletíssimo grupo das pessoas de alto QI se tivesse vivido 80 anos atrás. Ou seja, as mesmas habilidades intelectuais que possuem hoje um homem ou uma mulher comuns seriam suficientes para garantir-lhes altas notas num teste de inteligência realizado no Brasil da década de 1920. O nome desse fenômeno é efeito Flynn, e há mais de duas décadas desafia os psicólogos a encontrar uma explicação.

Em 1987 o cientista político neozelandês James Flynn publicou um estudo comparando notas de testes de QI aplicados em 14 países ao longo do século 20. Os resultados eram impressionantes, pois mostravam um ganho médio de 10 pontos de QI a cada geração. Hoje já há dados para 25 países e todos confirmam a ocorrência de alta nos resultados dos testes. Acredita-se que essa tendência é recente e teria começado a partir do processo de industrialização. Em vez de soltar rojões, porém, os cientistas se vêem com questões difíceis para responder. Que fatores estão causando este crescimento? Ele pode significar algo para o futuro da humanidade? E a mais importante delas: o que realmente é a inteligência, e o que significa ser mais inteligente?

De cara, é preciso saber que o efeito Flynn ainda desperta certa polêmica. Alguns psicólogos acham que a elevação dos índices de QI não tem nada a ver com inteligência. A causa estaria na popularização dos testes.

Esses céticos argumentam que quando esse tipo de teste começou a ser aplicado, no começo do século 20, a maior parte dos avaliados nunca tinha feito algo parecido. Naquela época, a média da avaliação (que é o que chamamos de QI) não tinha o status que tem hoje, e muitos não se empenhavam em responder às questões da melhor forma possível.

Agora, quem passa por um teste se esforça ao máximo para evitar o estigma de uma nota baixa. Numa sociedade acostumada a concursos concorridos como a nossa, é natural que os alunos de hoje conheçam certos truques que ajudam a melhorar a performance em qualquer prova. E até o formato das questões deixou de ser novidade e pode ser encontrado em livros, revistas e sites. "Já vi versões adaptadas de testes de inteligência até nas bandejas do McDonald's e no programa do Ratinho", diz o neuropsicólogo Daniel Fuentes, que trabalha no Hospital das Clínicas de São Paulo e é psicólogo-supervisor da Mensa, uma associação mundial de pessoas de alto QI.

Ele conta que no próprio HC observou um episódio que poderia explicar o efeito Flynn. Durante anos, os psicólogos do hospital recorriam a um teste de inteligência americano para realizar pesquisas com funcionários do hospital. Recentemente, porém, foi desenvolvida uma versão do teste adaptada para a população brasileira. Com a nova versão a nota média dos funcionários do HC subiu de 100 para 110 pontos. "Acho que a nova versão reflete melhor o desempenho intelectual dos avaliados, por ser mais adaptada ao perfil do brasileiro", diz Fuentes, "mas não acredito que o potencial intelectual da população do HC esteja aumentando, nem o da humanidade ".


A maior parte dos estudiosos, porém, discorda. Num livro clássico sobre o assunto intitulado "The Rising Curve" (A Curva Ascendente), o alemão Ulric Neisser diz que "quando uma pessoa é submetida várias vezes a um mesmo teste de inteligência, a melhora na performance costuma ser em média de apenas 5 ou 6 pontos, algo bem inferior aos 20 encontrados na Holanda ou aos quase 30 na Inglaterra". Além disso, a idéia da popularização das questões parece sugerir que de alguma forma o aluno já tem alguma noção do conteúdo das questões antes de ser avaliado. Mas os maiores aumentos foram registrados precisamente nos testes que medem o pensamento abstrato, menos dependente de conhecimento prévio.
Muitas inteligências ou uma só?

A psicologia sabe há mais de um século que o pensamento humano pode realizar diferentes tarefas. Existe o raciocínio numérico, o verbal, o abstrato, o espacial etc. Cada teste de inteligência é na verdade um conjunto de subtestes diferentes, que avaliam todas as habilidades. Acontece que quanto melhor uma pessoa se sai num subteste - digamos, o de raciocínio numérico -, maior é a chance de que tenha um bom desempenho nos demais. Em 1904 o britânico Charles Spearman sugeriu que "algo" na mente das pessoas deve explicar a tendência a se ter maior ou menor facilidade nas tarefas que envolvam raciocínio. A esse "algo" chamou de fator geral, ou simplesmente fator g. O fator g seria uma espécie de "essência da inteligência" , uma capacidade em boa parte inata que se expressaria em diferentes atividades.

Muitos estudiosos estão tentando provar que é justamente o tal fator g que os testes de QI medem, ainda que de forma indireta. Experimentos mostram que pessoas com QI alto têm reflexos mais rápidos, tomam decisões em menos tempo e seus cérebros gastam menos energia para solucionar problemas.

Um estudo da socióloga americana Linda Gottfredson comparando pessoas com QI abaixo de 70 e acima de 130 mostrou que as mulheres abaixo de 70 têm quatro vezes mais chances de terem filhos ilegítimos e oito vezes mais chances de se tornarem dependentes do seguro desemprego. Os homens da mesma faixa mostraram maior tendência ao desemprego e, de maneira geral, as pessoas de QI mais baixo têm chances muito maiores de abandonarem a escola, se divorciarem, serem presas e viverem na pobreza. Estudos envolvendo QI e comportamento beneficiam os portadores das médias mais altas em mais de 60 itens, incluindo rendimentos financeiros, cargos de chefia, envolvimento em acidentes de trânsito etc.

É tentador agrupar todos esses elementos numa equação cheia de esperança: a nossa inteligência é expressada pelo nosso QI, e quanto maior o QI maiores as chances de que uma pessoa venha a ter uma vida mais feliz. Como o efeito Flynn mostra que o nosso QI está aumentando, a humanidade finalmente parece estar caminhando para um futuro melhor, a despeito de todas as dificuldades que vive agora.

Curiosamente o próprio James Flynn não concorda. Em artigo inédito a que GALILEU teve acesso, ele ataca a idéia de que o QI expresse a tal essência da inteligência. Flynn argumenta que se submetêssemos a população de uma cidade americana da década de 1920 a um teste segundo os padrões atuais, 45% das pessoas marcaria menos de 75 pontos, um valor muito baixo. "Se o QI de uma pessoa corresponde a sua inteligência, teríamos que concluir que metade das pessoas que viveram nos EUA no início do século eram retardadas", ataca. Como isso não parece provável, o neozelandês sugere que o QI avalia apenas algumas habilidades da nossa mente. "E não necessariamente as mais importantes", fulmina.

A polêmica dos primogênitos

Uma das mais surpreendentes linhas de pesquisa em inteligência é a que sugere que filhos primogênitos possuiriam maior capacidade intelectual. Os estudos começaram ainda no século 19 quando o britânico Francis Galton estudou a vida de 180 famosos cientistas e descobriu que 48% deles eram primogênitos ou filhos únicos. Levantamentos feitos no século 20 mostraram que os primogênitos eram encontrados em grande número entre ganhadores do prêmio Nobel. E um estudo feito com 314 grandes personalidades do século passado mostrou que 46% deles eram também os primeiros herdeiros da família.

Os resultados levaram os estudiosos a concluir que o tamanho da família influenciaria negativamente no QI das pessoas. Quanto maior o número de crianças, menor o QI médio. Ambas as teorias levaram uma ducha de água fria em 2000, quando um estudo americano que avaliou 11 mil jovens não encontrou nenhuma evidência entre ordem de nascimento e desenvolvimento de QI. Quanto à questão do tamanho da família, o que os dados sugerem é que pessoas com QI mais alto tendem a optar por um número menor de filhos. Mas o debate ainda não cessou.


Os argumentos de Flynn vão ao encontro de algumas teorias surgidas nos anos 1990, que destacam o caráter múltiplo da inteligência. Uma das mais difundidas é o chamado modelo CHC (veja box). O CHC reconhece a existência de dez capacidades mentais diferentes, e descreve o funcionamento do nosso pensamento com termos que parecem saídos da informática, como velocidade de processamento e capacidade de acesso à memória de longo prazo.

Dieta boa para o cérebro

"Por esse modelo, o que estaria crescendo é a chamada inteligência fluida, que é a responsável pelo raciocínio abstrato e a solução de problemas novos", explica o psicólogo Ricardo Primi, do Laboratório de Avaliação psicológica da universidade São Francisco, no Estado de São Paulo. Quando se adota essa visão segmentada do mecanismo cognitivo, o crescimento do QI pode ser entendido de outra forma. Estaríamos ficando mais competentes para executar tarefas específicas, e não mais inteligentes no sentido global da palavra. "Dessa melhora localizada podem vir coisas boas, mas não numa escala tão vasta quanto pode parecer a princípio", diz Primi.


Falta entender as causas desse crescimento. Muitos estudiosos relacionam os avanços feitos em áreas como saúde, educação e, principalmente, alimentação como fatores importantes. "A melhora da alimentação é uma das causas do efeito Flynn", diz o espanhol Roberto Colom, da Universidade Autônoma de Madrid. Ele cita pesquisas feitas na Espanha que sugerem que os maiores beneficiados pelo crescimento de QI são as pessoas situadas nos estratos sociais mais baixos, as quais, tradicionalmente, têm uma alimentação menos nutritiva. Outro exemplo é uma pesquisa feita no ano passado pela Universidade da Califórnia entre 537 crianças da zona rural do Quênia. Os americanos detectaram um aumento de 11 pontos de QI em apenas 14 anos, e creditaram o salto principalmente "à melhora na saúde causada pela elevação no consumo de proteínas".


Mas tem de haver outras razões. Afinal os QIs continuam subindo mesmo em países como a Holanda, que apresenta ótimos indicadores sociais há décadas. Para Neisser, uma das possíveis causas seria a crescente presença de imagens em nossa sociedade. Ele ressalta que cada geração do século 20 viu popularizar-se uma nova maneira de difusão visual, numa trajetória que inclui a fotografia, o cinema, a televisão, os videogames e chega aos PCs. Isso possibilitaria que, em cada geração, as crianças perfeiçoassem certas habilidades mentais de análise, embora não esteja exatamente claro como isso aconteceria.


O psicólogo pernambucano Bruno de Souza tentou compreender essa ligação em seu doutorado recém-concluído na UFPE. Partindo da análise de milhares de questionários preenchidos por médicos e estudantes de segundo grau de todo o país, ele procurou avaliar de que forma a interação com as tecnologias da informação pode estar mudando a maneira como as pessoas pensam. De Souza concluiu que quanto maior a intimidade de uma pessoa com computadores e internet, maior a chance de que ela incorpore ao seu jeito de pensar alguns elementos dessas tecnologias. Entre essas características estão o raciocínio lógico matemático e a preferência pelo pensamento através de imagens mentais.


QI nacional

Veja quais são as estimativas para as médias de 15 nações :

Japão             105
Itália              102
Suécia            101
Reino Unido  100
EUA                 98
Dinamarca      98
França             98
Austrália         98
Canadá            97
Argentina        96
Chile                93
México            87
Brasil               87
Cuba                85
Zimbábue       66


Marylin uma mente no livro dos recordes


Quem é a pessoa mais inteligente do mundo? Durante algum tempo esse título pertenceu informalmente à americana Marilyn Vos Savant. Ela chegou a figurar no livro "Guiness" como dona do recorde mundial em QI: 228 pontos, medidos quando ela tinha 10 anos. Avaliações posteriores reduziram esse valor para 180, mas isso não impediu que ela se tornasse famosa. Ela possui uma coluna na revista americana "Parade" intitulada "Pergunte a Marilyn", onde responde a todo tipo de pergunta científica.

A coluna volta e meia publica algumas explicações pouco completas ou mesmo incorretas. Essas derrapadas são impiedosamente apontadas e comentadas na internet por vigilantes leitores, determinados a provar que QI alto não garante infalibilidade.

Enquanto Marilyn convive com as dificuldades da fama, um novo prodígio vem atraindo a atenção da mídia americana: o garoto Sho Yano, que ano passado começou a estudar medicina na universidade de Chicago, apesar de ter apenas 12 anos.

 A democratização do QI

Flynn defende outra explicação, que ilustra com a seguinte historinha: ao longo do século 20 o basquete tornou-se um esporte de massa nos EUA. Essa difusão elevou o nível técnico exigido dos jovens que queriam se profissionalizar. Para se destacar, alguns poucos aprenderam a arremessar bem com ambas as mãos. Na geração seguinte todos os jogadores sabiam arremessar bem com as duas mãos. Os que quiseram se destacar aprenderam a fazer passes com as duas mãos. Com o tempo, passar com as duas mãos passou a ser a norma, e não mais a exceção, e o processo segue até hoje.

Transportando esse modelo para as atividades mentais, o que vemos é que cada geração deve enfrentar cobranças intelectuais maiores do que as anteriores. É o caso das crianças que se vêem desafiadas a aprender a usar computadores e internet, desafios que não existiram durante a infância de seus pais. Há duas décadas, um diploma universitário era garantia de emprego. Hoje o Brasil bate recordes na formação de doutores com menos de 30 anos, e isso não garante trabalho para ninguém. O raciocínio de Flynn sugere que nosso QI está subindo para lidar com uma vida cada vez mais complexa.

Carmen Mendoza, pesquisadora da UFMG, vê esse processo de forma positiva. Organizadora (junto com Colom) do livro do qual faz parte o artigo inédito de Flynn citado acima, ela é pioneira nos estudos dessa área no Brasil. Carmen documentou um caso em que alunos de escolas públicas de Minas Gerais avaliados em 2002 alcançaram os mesmos índices de inteligência dos estudantes de escolas particulares de São Paulo registrados em 1987.

Ela cita também um estudo espanhol que mostra que enquanto o QI médio dos universitários daquele país subiu 6 pontos nas últimas décadas, o da população com escolaridade menor cresceu 19 pontos. "As pessoas mais despreparadas para viver numa sociedade complexa foram as que tiveram maior ganho intelectual", analisa Carmen. "O efeito Flynn não tem a ver com genialidade, mas com o crescimento democrático da inteligência", diz. Sob esse ponto de vista, o mundo talvez esteja mesmo ficando melhor.


Para navegar

• Mensa Brasil www.mensa.com.br

Para ler

• "The Rising Curve", Ulric Neisser. American Psychological Association. 1998

• "Introdução à Psicologia das Diferenças Individuais", Carmen Mendoza e Roberto Colom (org.). Artmed. 2004

Multiaplicativo

As 10 facetas da inteligência

INTELIGÊNCIA FLUIDA

Capacidade ligada às operações mentais de raciocínio em situações novas, sem depender de conhecimentos anteriores. Um detetive que tenta juntar as pistas para solucionar um crime, por exemplo, está usando sua inteligência fluida.

INTELIGÊNCIA CRISTALIZADA

É a inteligência que desenvolvemos pelo estudo e pela educação. Quem já resolveu um problema várias vezes, por exemplo, só precisa recorrer a essa capacidade para repetir a tarefa. Baseia-se principalmente na linguagem.

CONHECIMENTO QUANTITATIVO

Ligada às matemáticas, é a habilidade de usar informação quantitativa e manipular símbolos numéricos.

LEITURA E ESCRITA

Determina a competência para a expressão verbal e escrita, bem como para interpretar textos. Professores de humanidades como história e literatura são um ótimo exemplo.

MEMÓRIA DE CURTO PRAZO

Habilidade associada à manutenção de informações na consciência por um curto espaço de tempo para poder recuperá-las logo em seguida.

PROCESSAMENTO VISUAL

Envolve gerar, perceber, armazenar, analisar, e transformar imagens visuais. É a mais desenvolvida tanto por profissões artísticas, como pintura e designers, como em atividades que envolvem também algum pensamento matemático.

PROCESSAMENTO AUDITIVO

Determina a percepção, análise e síntese de padrões sonoros. Quando um bebê começa a tentar entender as palavras, decompondo-as em fonemas e repetindo-as, está começando a exercitar essa capacidade.

ARMAZENAMENTO E RECUPERAÇÃO DA MEMÓRIA DE LONGO PRAZO

Fluência com que acessamos a informação guardada em nossa memória de longo prazo, por meio de associações. A capacidade de realizar novas associações entre informações é a chave para o pensamento criativo. Esta habilidade também é chamada de "domínio da produção de idéias".

VELOCIDADE DE PROCESSAMENTO

Capacidade de manter a atenção e realizar rapidamente tarefas simples automatizadas em situações que pressionam o foco da atenção.

RAPIDEZ DE DECISÃO

Velocidade para reagir ou tomar decisões envolvendo processamentos mais complexos.

                            
                            
                            

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