Superdotação, Asperger (TEA) e Dupla Excepcionalidade por Claudia Hakim

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sexta-feira, 13 de julho de 2012

Superdotados encontram amparo ético e legal na educação especial, mas a inclusão, na prática, está longe de ser realidade







Mentes inquietas



Valéria Hartt







Na sala de aula, casos de dislexia e transtornos de atenção já não soam estranhos aos ouvidos dos educadores. Mérito da prática da educação inclusiva, que bem ou mal incorpora o atendimento às dificuldades de aprendizagem, sob o reconhecimento de que podemos, sim, ser muito diferentes. O mesmo olhar, no entanto, encontra resistências quando o aluno em perspectiva apresenta habilidades incomuns entre os pares da mesma idade, demonstra talentos especiais ou potencial cognitivo superior. Sinal de que a educação inclusiva no Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer ao encontro do aluno superdotado.



Dados do Censo Escolar de 2005 revelam que menos de 0,3% das crianças e jovens inscritos nos programas de Educação Especial do ensino fundamental são identificados como superdotados. Há dois anos, somavam 1.928 alunos, em um universo de 640.317 com necessidades educacionais especiais.



"São números que sugerem que o atendimento à demanda potencial está muito aquém do desejável e indicam a urgente necessidade de formação profissional para ampliar os índices de identificação desses alunos e garantir a eles serviços especiais", reconhece a pedagoga Renata Rodrigues Maia-Pinto, analista de Planejamento e Gestão Educacional da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (Seesp/MEC).



A construção da educação inclusiva



Mas há perspectivas de um novo cenário.  No final de maio, a Seesp reuniu em Brasília 110 educadores de todo o país para mais um curso de formação destinado à implementação de Núcleos de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S). Instituída em 2005, é a primeira política pública nessa área encampada pelo governo federal, ainda que se dê a passos lentos e careça de maior visibilidade. 




A meta oficial é ambiciosa : prevê o atendimento a 20% dos alunos da rede, da pré-escola ao ensino superior, além de suporte pedagógico aos professores e orientação às famílias envolvidas. Por ora, a proposta começa a sair do papel e está longe de alcançar a amplitude pretendida. Há apenas um NAAH/S em cada uma das 26 capitais, além do Distrito Federal, cada um com estrutura para receber até 60 alunos.    



Apesar da tímida implementação, o programa pode ter gerado seu primeiro efeito. O Censo Escolar de 2006 revelou aumento de 46,3% no número de alunos com altas habilidades atendidos na educação especial, agora com 2.553 crianças registradas.



A parceria com a Universidade de Brasília (UnB), firmada em fevereiro, reforça a capacitação de professores. No último encontro (A Construção de Práticas Educacionais para Alunos com Altas Habilidades, 40 horas), a UnB ofereceu apoio prático e teórico, com a elaboração e edição de uma coletânea de quatro livros, distribuída a 5 mil professores.






Colégio Objetivo, em São Paulo: programa voltado ao incentivo de talentos existe desde meados da década de 80





Modelos pedagógicos



O programa brasileiro segue o modelo de enriquecimento proposto pelo psicólogo e educador americano Joseph Renzulli.  A idéia é oferecer ao aluno oportunidades de aprofundar o conhecimento na sua área de interesse. Podem ser estudos independentes ou por meio de pequenos grupos de investigação, minicursos ou desenvolvimento de centros de interesse.



Como unidade autônoma, cada NAAH/S tem sua própria conformação, currículos flexíveis e abertos. O ponto em comum é o funcionamento no contra-período da escola regular, o atendimento multidisciplinar e o material básico - mais de 105 itens, entre equipamentos de informática, coleções para a organização de bibliotecas, jogos pedagógicos e de estratégia. De resto, valem parcerias, como a estabelecida pelo núcleo de Recife com o CNPq e a Universidade Federal de Pernambuco ou o convênio do NAAH/S de Mato Grosso do Sul com duas universidades em Campo Grande e uma em Dourados.




Em outros moldes, vem de Lavras a experiência do Centro para o Desenvolvimento do Potencial e Talento (Cedet), criado em 93 e hoje uma das mais reconhecidas práticas pedagógicas para dotação e talento. Em 1998, foi apontado como referência nacional e, quatro anos depois, destacado em estudo do conselho britânico. O sucesso do modelo mineiro inspirou a criação de outros centros, como o Cedet de Palmas, Vitória e São José dos Campos.



A proposta pedagógica inspira-se em educadores como Helena Antipoff, Abe Maslow e Paulo Freire, em um modelo que contempla hoje 833 alunos. Para a formação docente, o Centro mantém o primeiro e único curso de pós-graduação semipresencial (Especialização em Educação para Talentosos e Bem-dotados), incorporado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Lavras, em 2001.






Pouco importa rotular o superdotado; o importante é atendê-lo. Mas quais são as escolas aptas a dar o atendimento adequado? Eunice Soriano de Alencar, Professora Emérita da UnB



Observação assistida



Com um plano individual, adequado ao seu talento, necessidades e interesses pessoais, cada criança encontra no Cedet atividades de enriquecimento curricular em três grandes áreas: comunicação, organizações e humanidades; ciência, investigação e tecnologia; criatividade, habilidades e expressão.  



A integração com a escola regular começa na identificação do aluno, apoiada nos quatro domínios preconizados pelo canadense François Gagné (inteligência e capacidade intelectual; criatividade e pensamento criador; capacidade socioafetiva e intrapessoal;  habilidades sensório-motoras). Ao final do ano letivo, cada professor, da pré-escola à 4ª série, preenche uma folha de dados e aponta alunos que, segundo os critérios do Cedet, apresentam comportamentos e atributos indicativos de capacidade elevada.



A etapa seguinte é a observação assistida, realizada no próprio Centro. Só então a criança passa a receber atendimento. A partir da 5ª série, quando o conjunto de disciplinas faz recair sobre o aluno olhares de diferentes educadores, qualquer indicação à observação assistida deve ser validada pelo colegiado da classe.



"Não utilizamos nenhuma situação envolvendo testes, medidas padronizadas ou meios de aferição psicológica. Nossa adesão continua fiel ao processo de conviver, observar e acompanhar a criança, coletar sua produção por meio de alguma forma de portfólio, fazer a avaliação grupal e individual, em cada situação", explica Zenita Guenther, diretora-técnica do Cedet.





Christina Cupertino, coordenadora do Poit: programação avançada e atividades de enriquecimento




Contrastes



Há diferenças importantes entre a prática do Cedet, a proposta dos NAAH/S e a de uma terceira iniciativa, esta conduzida pelo Instituto Social Maria Telles (Ismart), da Fundação Lemann, que apóia alunos de baixa renda cuja principal característica é o talento acadêmico.



O Cedet dispensa os testes psicológicos na identificação, mas se detém nos percentuais conservadores, entre 3% e 5% da população geral.



O Ismart associa testes e a observação do aluno. A identificação é feita ao longo da 6ª série e a partir da 7ª o estudante passa a freqüentar escolas parceiras, da rede privada, como parte do Projeto Alicerce. Apenas se cumprir o desempenho exigido - aproveitamento de pelo menos 70% em todas as disciplinas - permanece como bolsista no ensino médio, em uma das escolas engajadas nos dois outros projetos do Instituto (Bolsa Talento e Espaço Talento), hoje nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza. No processo de seleção, também o Ismart se concentra na mesma porção de alunos, baseado em critérios como alto nível de desempenho escolar, acentuada atividade intelectual e motivação para aprender.



A política oficial propõe ir além: "De acordo com o nosso critério, acreditamos que podemos trabalhar com até 20% dos alunos da rede. Temos um potencial criativo muito grande a ser desenvolvido e isso pode acontecer em diferentes áreas", sustenta Renata Maia-Pinto.






"Nossa adesão continua fiel ao processo de conviver, observar e acompanhar a criança, avaliá-la em cada situação" 
Zenita Guenther, diretora-técnica do Cedet







Muitas visões



A falta de consenso sobre como lidar com o tema começa em sua própria compreensão, o que resulta em mais de 100 definições diferentes.



Sob a ótica da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 3% e 5% da população mundial é constituída de superdotados, numa classificação que considera apenas indivíduos identificados por testes de QI superior a 140. Já a Secretaria de Educação Especial do MEC, utiliza um conceito ampliado, seguindo proposta aprovada pelo Departamento de Saúde, Educação e Bem-estar dos Estados Unidos, feita em 1972. "Superdotação caracteriza-se pela elevada potencialidade de aptidões, talentos e habilidades, evidenciadas pelo alto desempenho nas diversas áreas de atividade", define a Seesp/MEC no manual lançado em 1999 para a formação de educadores. Estão contemplados aí não apenas os talentos cognitivos, de capacidade intelectual superior, mas também os talentos criativos, psicomotores e aptidões acadêmicas específicas.  



A superdotação no ensino privado



A descoberta de talentos e seu atendimento por meio de um trabalho pedagógico sistematizado também se impõe como desafio para a rede privada. "Os professores, pedagogos e psicólogos não recebem, em seus cursos de formação, uma bagagem para lidar com esse aluno. Os pais, por sua vez, querem primeiro confirmar o diagnóstico. E daí? Não interessa rotulá-lo, mas atendê-lo em suas singularidades, em suas necessidades individuais. Que escola pode dar a ele atendimento adequado? Esse continua sendo o grande nó da questão", aponta Eunice Soriano de Alencar, nome de referência na área. Hoje aposentada com o título de Professora Emérita da UnB, implementou de forma pioneira no país as linhas de pesquisa "Processos de Identificação e Atendimento ao Superdotado" e "Criatividade nos Contextos Educacional e Organizacional", pelo Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, do Instituto de Psicologia.



O Colégio Objetivo, sediado em São Paulo, está entre os poucos a manter um trabalho estruturado para o aluno superdotado, identificado por meio de testes, observações e entrevistas com pais e professores. No Programa Objetivo de Incentivo ao Talento (Poit), criado em 1986, o aluno freqüenta a sala regular e recebe aulas especiais, formatadas por faixa etária e áreas de interesse. Assim, crianças do 1º  e 2º anos podem, por exemplo, participar das oficinas de criatividade, enquanto o teatro de fantoches, as oficinas de brinquedos e de bonecos estão abertas a alunos do 3º ao 6º ano. Para o ensino médio, a proposta envolve a produção de programas de TV e sites para a internet (diagramação, ferramentas vetoriais e recursos de áudio), com animação em Flash.   



"São cursos de programação avançada e atividades de enriquecimento intelectual e afetivo", define Christina Cupertino, coordenadora do Poit. O Programa ainda não foi adotado por nenhuma franqueada e continua restrito às unidades próprias do Colégio Objetivo em São Paulo, Barueri (Alphaville)  e Cotia (Granja Viana).



Indicações e perigos da aceleração



Ao lado das propostas de enriquecimento, também a estratégia de Aceleração é considerada no atendimento ao superdotado. O aluno pode participar de cursos especiais, freqüentar matérias em salas mais avançadas ou, ainda, ingressar antecipadamente na pré-escola. São formas diferentes de aceleração curricular que, em tese, devem proporcionar ao aluno a oportunidade de avançar, no seu próprio ritmo.



"A nossa cultura escolar não favorece a Aceleração, mas não é um modelo a ser desprezado. Não é melhor nem pior que o Enriquecimento, depende apenas de uma adequação", defende Inês França, gerente-técnica do Ismart. Na mesma linha, Tânia Gonzaga Guimarães, da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal, onde se pratica uma das mais antigas experiências pedagógicas do país, cita diferentes teóricos para sustentar que a Aceleração, conduzida de forma adequada, tende a ser uma forma de enriquecimento, enquanto um programa de enriquecimento apropriado também comporta a aceleração.



Na prática, há casos como o de um jovem de 13 anos, que cursa o ensino médio em uma escola regular do Rio de Janeiro e freqüenta as aulas de Cálculo II do Instituto de Matemática da Universidade Federal Fluminense (UFF). No Cálculo I, foi aprovado em quarto lugar, com 6,4 de média final.








"Os preconceitos levam muitas crianças a mascarar ou negar suas habilidades, em busca de aceitação", alerta Denise Fleith, da UnB





Cognição X desenvolvimento emocional



"Entendemos que esse jovem fica com seu desenvolvimento afetivo e emocional comprometido quando deslocado de outros interesses próprios da idade. Valoriza-se apenas o cognitivo, sem considerar que esse indivíduo pode estar sofrendo por não estar sendo contemplado em suas necessidades emocionais e sociais", diz Daniel Fuentes, diretor do serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. A pertinência da visão de Fuentes é inegável, principalmente quando se considera que é freqüente entre os superdotados uma certa assimetria entre o desenvolvimento cognitivo e seu grau de maturidade emocional e psicossocial.



A psicóloga Cristina Maria Carvalho Delou, mestre e doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da UFF, reconhece a preocupação, mas assegura que a Aceleração é, em muitos casos, a melhor resposta para a inclusão. Toma como exemplo o mesmo jovem que se destaca nas aulas de cálculo da Universidade Fluminense, onde a especialista coordena um grupo de apoio a superdotados.



"Quando o conheci, aos 12 anos, ele já dominava o alemão e hoje é poliglota, demonstra precocidade na leitura e um repertório muito avançado para a idade. Em uma classe regular, ele não teria o que conversar com jovens de 13, 14 anos, enquanto na UFF apresenta um nível de motivação altíssimo, sem nenhuma estereotipia. Por que, então, não deixá-lo simplesmente ser feliz?", questiona. "Sem dúvida, vivemos muitas contradições e temos muito que caminhar no sentido da inclusão", conclui.



Mitos e verdades



No novo milênio, a visão multidimensional da inteligência, já apontada desde meados do século passado por teóricos como Joy Paul Guilford  (Creativity, American Psychologist, 1950 e The Nature of Human Intelligence,  McGraw-Hill, 1967),  ganhou força com a projeção da obra de Howard Gardner, autor da teoria das Inteligências Múltiplas (Inteligências Múltiplas, 1995).
 



Mas no senso comum ainda prevalece a valorização do cognitivo.
E a escola não é exceção.



"A escola valoriza apenas duas inteligências : a lingüística e a lógico-matemática. Se você tiver essas inteligências bem desenvolvidas, não terá dificuldades na grande maioria das disciplinas. Quase todas utilizam essas habilidades não só para refletir os conhecimentos adquiridos, mas, fundamentalmente, avaliam esses conhecimentos a partir dessas duas inteligências. Já o contrário não é verdadeiro. Se o aluno for um brilhante desenhista, pintor, músico, atleta, dançarino etc., mas deixar a desejar nas outras disciplinas, certamente vai rodar", diz a presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD), Susana Barrera Pérez.



Por essa janela coletiva, o superdotado ainda transita entre o estereótipo da genialidade e da aberração. De um lado, o estigma do aluno prodígio, do jovem inventor, do próprio gênio. No outro extremo, o esquisito, o nerd da classe, a raridade.



"São preconceitos que levam muitas crianças a mascarar ou negar suas habilidades, em busca de aceitação. Sabem que suas características individuais podem levá-las à solidão, ao isolamento social e à rejeição pelos colegas", alerta  a pesquisadora Denise Fleith,  Ph.D. pela Universidade de Connecticut e professora adjunta do Departamento de Psicologia Escolar e de Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da UnB.



Os desafios para a inclusão



- Disseminar a área da superdotação, aprofundando o conhecimento da sociedade sobre o tema ;



- Ressaltar as necessidades cognitivas, sociais e emocionais especiais dessa população ;



- Combater mitos e falácias, como o de que o superdotado não necessita de mais recursos, podendo se desenvolver sozinho ;



- Proporcionar treinamento especializado aos profissionais envolvidos ;



- Proporcionar materiais adequados à necessidade do grupo ;



- Desenvolver e utilizar técnicas modernas de identificação ;



- Adaptar e diferenciar currículos e programas aos diferentes níveis, em escolas públicas e particulares ;


- Implantar cursos de graduação e pós-graduação específicos para a área nas universidades brasileiras ;


- Realizar mais pesquisas com essa população para a nossa realidade; Publicar e implementar a literatura especializada em nosso idioma.



Fonte: Altas Habilidades/Superdotação - Encorajando Potenciais (Angela M. R. Virgolim , SEESP/MEC, Brasília, 2007)





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