Extraído do site : http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/123/artigo234213-1.asp
Mentes inquietas
Valéria Hartt
Na sala de aula,
casos de dislexia e transtornos de atenção já não soam estranhos aos ouvidos
dos educadores. Mérito da prática da educação inclusiva, que bem ou mal
incorpora o atendimento às dificuldades de aprendizagem, sob o reconhecimento
de que podemos, sim, ser muito diferentes. O mesmo olhar, no entanto, encontra
resistências quando o aluno em perspectiva apresenta habilidades incomuns entre
os pares da mesma idade, demonstra talentos especiais ou potencial cognitivo
superior. Sinal de que a educação inclusiva no Brasil ainda tem um longo
caminho a percorrer ao encontro do aluno superdotado.
Dados do Censo
Escolar de 2005 revelam que menos de 0,3% das crianças e jovens inscritos nos
programas de Educação Especial do ensino fundamental são identificados como
superdotados. Há dois anos, somavam 1.928 alunos, em um universo de 640.317 com
necessidades educacionais especiais.
"São números que
sugerem que o atendimento à demanda potencial está muito aquém do desejável e
indicam a urgente necessidade de formação profissional para ampliar os índices
de identificação desses alunos e garantir a eles serviços especiais", reconhece
a pedagoga Renata Rodrigues Maia-Pinto, analista de Planejamento e Gestão
Educacional da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação
(Seesp/MEC).
A construção da
educação inclusiva
Mas há perspectivas
de um novo cenário. No final de maio, a Seesp reuniu em Brasília 110
educadores de todo o país para mais um curso de formação destinado à
implementação de Núcleos de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação
(NAAH/S). Instituída em 2005, é a primeira política pública nessa área encampada
pelo governo federal, ainda que se dê a passos lentos e careça de maior
visibilidade.
A meta oficial é
ambiciosa : prevê o atendimento a 20% dos alunos da rede, da pré-escola ao
ensino superior, além de suporte pedagógico aos professores e orientação às
famílias envolvidas. Por ora, a proposta começa a sair do papel e está longe de
alcançar a amplitude pretendida. Há apenas um NAAH/S em cada uma das 26
capitais, além do Distrito Federal, cada um com estrutura para receber até 60
alunos.
Apesar da tímida
implementação, o programa pode ter gerado seu primeiro efeito. O Censo Escolar
de 2006 revelou aumento de 46,3% no número de alunos com altas habilidades
atendidos na educação especial, agora com 2.553 crianças registradas.
A parceria com a
Universidade de Brasília (UnB), firmada em fevereiro, reforça a capacitação de
professores. No último encontro (A Construção de Práticas Educacionais para
Alunos com Altas Habilidades, 40 horas), a UnB ofereceu apoio prático e
teórico, com a elaboração e edição de uma coletânea de quatro livros,
distribuída a 5 mil professores.
Colégio Objetivo, em São Paulo: programa voltado ao incentivo de talentos existe desde meados da década de 80
Modelos pedagógicos
O programa brasileiro
segue o modelo de enriquecimento proposto pelo psicólogo e educador americano
Joseph Renzulli. A idéia é oferecer ao aluno oportunidades de aprofundar
o conhecimento na sua área de interesse. Podem ser estudos independentes ou por
meio de pequenos grupos de investigação, minicursos ou desenvolvimento de
centros de interesse.
Como unidade
autônoma, cada NAAH/S tem sua própria conformação, currículos flexíveis e
abertos. O ponto em comum é o funcionamento no contra-período da escola regular,
o atendimento multidisciplinar e o material básico - mais de 105 itens, entre
equipamentos de informática, coleções para a organização de bibliotecas, jogos
pedagógicos e de estratégia. De resto, valem parcerias, como a estabelecida
pelo núcleo de Recife com o CNPq e a Universidade Federal de Pernambuco ou o
convênio do NAAH/S de Mato Grosso do Sul com duas universidades em Campo Grande
e uma em Dourados.
Em outros moldes, vem
de Lavras a experiência do Centro para o Desenvolvimento do Potencial e Talento
(Cedet), criado em 93 e hoje uma das mais reconhecidas práticas pedagógicas
para dotação e talento. Em 1998, foi apontado como referência nacional e,
quatro anos depois, destacado em estudo do conselho britânico. O sucesso do
modelo mineiro inspirou a criação de outros centros, como o Cedet de Palmas,
Vitória e São José dos Campos.
A proposta pedagógica
inspira-se em educadores como Helena Antipoff, Abe Maslow e Paulo Freire, em um
modelo que contempla hoje 833 alunos. Para a formação docente, o Centro mantém
o primeiro e único curso de pós-graduação semipresencial (Especialização em
Educação para Talentosos e Bem-dotados), incorporado à Pró-Reitoria de Extensão
da Universidade Federal de Lavras, em 2001.
Pouco importa rotular o superdotado; o importante é atendê-lo. Mas quais são as escolas aptas a dar o atendimento adequado? Eunice Soriano de Alencar, Professora Emérita da UnB
Observação
assistida
Com um plano
individual, adequado ao seu talento, necessidades e interesses pessoais, cada
criança encontra no Cedet atividades de enriquecimento curricular em três
grandes áreas: comunicação, organizações e humanidades; ciência, investigação e
tecnologia; criatividade, habilidades e expressão.
A integração com a
escola regular começa na identificação do aluno, apoiada nos quatro domínios
preconizados pelo canadense François Gagné (inteligência e capacidade
intelectual; criatividade e pensamento criador; capacidade socioafetiva e
intrapessoal; habilidades sensório-motoras). Ao final do ano letivo, cada
professor, da pré-escola à 4ª série, preenche uma folha de dados e aponta
alunos que, segundo os critérios do Cedet, apresentam comportamentos e
atributos indicativos de capacidade elevada.
A etapa seguinte é a
observação assistida, realizada no próprio Centro. Só então a criança passa a
receber atendimento. A partir da 5ª série, quando o conjunto de disciplinas faz
recair sobre o aluno olhares de diferentes educadores, qualquer indicação à
observação assistida deve ser validada pelo colegiado da classe.
"Não utilizamos
nenhuma situação envolvendo testes, medidas padronizadas ou meios de aferição
psicológica. Nossa adesão continua fiel ao processo de conviver, observar e
acompanhar a criança, coletar sua produção por meio de alguma forma de
portfólio, fazer a avaliação grupal e individual, em cada situação",
explica Zenita Guenther, diretora-técnica do Cedet.
Christina Cupertino, coordenadora do Poit: programação avançada e atividades de enriquecimento
Contrastes
Há diferenças
importantes entre a prática do Cedet, a proposta dos NAAH/S e a de uma terceira
iniciativa, esta conduzida pelo Instituto Social Maria Telles (Ismart), da
Fundação Lemann, que apóia alunos de baixa renda cuja principal característica
é o talento acadêmico.
O Cedet dispensa os
testes psicológicos na identificação, mas se detém nos percentuais
conservadores, entre 3% e 5% da população geral.
O Ismart associa
testes e a observação do aluno. A identificação é feita ao longo da 6ª série e
a partir da 7ª o estudante passa a freqüentar escolas parceiras, da rede
privada, como parte do Projeto Alicerce. Apenas se cumprir o desempenho exigido
- aproveitamento de pelo menos 70% em todas as disciplinas - permanece como
bolsista no ensino médio, em uma das escolas engajadas nos dois outros projetos
do Instituto (Bolsa Talento e Espaço Talento), hoje nas cidades de São Paulo,
Rio de Janeiro e Fortaleza. No processo de seleção, também o Ismart se
concentra na mesma porção de alunos, baseado em critérios como alto nível de
desempenho escolar, acentuada atividade intelectual e motivação para aprender.
A política oficial
propõe ir além: "De acordo com o nosso critério, acreditamos que podemos
trabalhar com até 20% dos alunos da rede. Temos um potencial criativo muito
grande a ser desenvolvido e isso pode acontecer em diferentes áreas", sustenta Renata Maia-Pinto.
"Nossa adesão continua fiel ao processo de conviver, observar e acompanhar a criança, avaliá-la em cada situação"
Zenita Guenther, diretora-técnica do Cedet
Muitas visões
A falta de consenso
sobre como lidar com o tema começa em sua própria compreensão, o que resulta em
mais de 100 definições diferentes.
Sob a ótica da
Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 3% e 5% da população mundial é
constituída de superdotados, numa classificação que considera apenas indivíduos
identificados por testes de QI superior a 140. Já a Secretaria de Educação
Especial do MEC, utiliza um conceito ampliado, seguindo proposta aprovada pelo
Departamento de Saúde, Educação e Bem-estar dos Estados Unidos, feita em 1972.
"Superdotação caracteriza-se pela elevada potencialidade de aptidões,
talentos e habilidades, evidenciadas pelo alto desempenho nas diversas áreas de
atividade", define a Seesp/MEC no manual lançado em 1999 para a formação
de educadores. Estão contemplados aí não apenas os talentos cognitivos, de
capacidade intelectual superior, mas também os talentos criativos, psicomotores
e aptidões acadêmicas específicas.
A superdotação no
ensino privado
A descoberta de
talentos e seu atendimento por meio de um trabalho pedagógico sistematizado
também se impõe como desafio para a rede privada. "Os professores,
pedagogos e psicólogos não recebem, em seus cursos de formação, uma bagagem
para lidar com esse aluno. Os pais, por sua vez, querem primeiro confirmar o
diagnóstico. E daí? Não interessa rotulá-lo, mas atendê-lo em suas
singularidades, em suas necessidades individuais. Que escola pode dar a ele
atendimento adequado? Esse continua sendo o grande nó da questão", aponta
Eunice Soriano de Alencar, nome de referência na área. Hoje aposentada com o
título de Professora Emérita da UnB, implementou de forma pioneira no país as
linhas de pesquisa "Processos de Identificação e Atendimento ao Superdotado"
e "Criatividade nos Contextos Educacional e Organizacional", pelo
Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, do Instituto de
Psicologia.
O Colégio Objetivo,
sediado em São Paulo, está entre os poucos a manter um trabalho estruturado
para o aluno superdotado, identificado por meio de testes, observações e
entrevistas com pais e professores. No Programa Objetivo de Incentivo ao
Talento (Poit), criado em 1986, o aluno freqüenta a sala regular e recebe aulas
especiais, formatadas por faixa etária e áreas de interesse. Assim, crianças do
1º e 2º anos podem, por exemplo, participar das oficinas de criatividade,
enquanto o teatro de fantoches, as oficinas de brinquedos e de bonecos estão
abertas a alunos do 3º ao 6º ano. Para o ensino médio, a proposta envolve a
produção de programas de TV e sites para a internet (diagramação, ferramentas
vetoriais e recursos de áudio), com animação em Flash.
"São cursos de
programação avançada e atividades de enriquecimento intelectual e
afetivo", define Christina Cupertino, coordenadora do Poit. O Programa
ainda não foi adotado por nenhuma franqueada e continua restrito às unidades
próprias do Colégio Objetivo em São Paulo, Barueri (Alphaville) e Cotia
(Granja Viana).
Indicações e
perigos da aceleração
Ao lado das propostas
de enriquecimento, também a estratégia de Aceleração é considerada no
atendimento ao superdotado. O aluno pode participar de cursos especiais,
freqüentar matérias em salas mais avançadas ou, ainda, ingressar
antecipadamente na pré-escola. São formas diferentes de aceleração curricular
que, em tese, devem proporcionar ao aluno a oportunidade de avançar, no seu
próprio ritmo.
"A nossa cultura
escolar não favorece a Aceleração, mas não é um modelo a ser desprezado. Não é
melhor nem pior que o Enriquecimento, depende apenas de uma adequação",
defende Inês França, gerente-técnica do Ismart. Na mesma linha, Tânia Gonzaga
Guimarães, da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal, onde se
pratica uma das mais antigas experiências pedagógicas do país, cita diferentes
teóricos para sustentar que a Aceleração, conduzida de forma adequada, tende a
ser uma forma de enriquecimento, enquanto um programa de enriquecimento
apropriado também comporta a aceleração.
Na prática, há casos
como o de um jovem de 13 anos, que cursa o ensino médio em uma escola regular
do Rio de Janeiro e freqüenta as aulas de Cálculo II do Instituto de Matemática
da Universidade Federal Fluminense (UFF). No Cálculo I, foi aprovado em quarto
lugar, com 6,4 de média final.
"Os preconceitos levam muitas crianças a mascarar ou negar suas habilidades, em busca de aceitação", alerta Denise Fleith, da UnB
Cognição X desenvolvimento emocional
"Entendemos que
esse jovem fica com seu desenvolvimento afetivo e emocional comprometido quando
deslocado de outros interesses próprios da idade. Valoriza-se apenas o
cognitivo, sem considerar que esse indivíduo pode estar sofrendo por não estar
sendo contemplado em suas necessidades emocionais e sociais", diz Daniel
Fuentes, diretor do serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. A pertinência da visão de Fuentes
é inegável, principalmente quando se considera que é freqüente entre os
superdotados uma certa assimetria entre o desenvolvimento cognitivo e seu grau
de maturidade emocional e psicossocial.
A psicóloga Cristina
Maria Carvalho Delou, mestre e doutora em Educação e professora da Faculdade de
Educação da UFF, reconhece a preocupação, mas assegura que a Aceleração é, em
muitos casos, a melhor resposta para a inclusão. Toma como exemplo o mesmo
jovem que se destaca nas aulas de cálculo da Universidade Fluminense, onde a
especialista coordena um grupo de apoio a superdotados.
"Quando o
conheci, aos 12 anos, ele já dominava o alemão e hoje é poliglota, demonstra
precocidade na leitura e um repertório muito avançado para a idade. Em uma
classe regular, ele não teria o que conversar com jovens de 13, 14 anos,
enquanto na UFF apresenta um nível de motivação altíssimo, sem nenhuma
estereotipia. Por que, então, não deixá-lo simplesmente ser feliz?",
questiona. "Sem dúvida, vivemos muitas contradições e temos muito que
caminhar no sentido da inclusão", conclui.
Mitos e verdades
No novo milênio, a
visão multidimensional da inteligência, já apontada desde meados do século
passado por teóricos como Joy Paul Guilford (Creativity, American
Psychologist, 1950 e The Nature of Human Intelligence, McGraw-Hill,
1967), ganhou força com a projeção da obra de Howard Gardner, autor da
teoria das Inteligências Múltiplas (Inteligências Múltiplas, 1995).
Mas no senso comum ainda prevalece a valorização do cognitivo. E a escola não é exceção.
"A escola
valoriza apenas duas inteligências : a lingüística e a lógico-matemática. Se
você tiver essas inteligências bem desenvolvidas, não terá dificuldades na
grande maioria das disciplinas. Quase todas utilizam essas habilidades não só
para refletir os conhecimentos adquiridos, mas, fundamentalmente, avaliam esses
conhecimentos a partir dessas duas inteligências. Já o contrário não é
verdadeiro. Se o aluno for um brilhante desenhista, pintor, músico, atleta,
dançarino etc., mas deixar a desejar nas outras disciplinas, certamente vai
rodar", diz a presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação
(ConBraSD), Susana Barrera Pérez.
Por essa janela
coletiva, o superdotado ainda transita entre o estereótipo da genialidade e da
aberração. De um lado, o estigma do aluno prodígio, do jovem inventor, do
próprio gênio. No outro extremo, o esquisito, o nerd da classe, a raridade.
"São
preconceitos que levam muitas crianças a mascarar ou negar suas habilidades, em
busca de aceitação. Sabem que suas características individuais podem levá-las à
solidão, ao isolamento social e à rejeição pelos colegas", alerta a
pesquisadora Denise Fleith, Ph.D. pela Universidade de Connecticut e
professora adjunta do Departamento de Psicologia Escolar e de Desenvolvimento
do Instituto de Psicologia da UnB.
Os desafios para a inclusão
- Disseminar a área
da superdotação, aprofundando o conhecimento da sociedade sobre o tema ;
- Ressaltar as necessidades cognitivas, sociais e emocionais especiais dessa população ;
- Combater mitos e falácias, como o de que o superdotado não necessita de mais recursos, podendo se desenvolver sozinho ;
- Proporcionar treinamento especializado aos profissionais envolvidos ;
- Proporcionar materiais adequados à necessidade do grupo ;
- Desenvolver e utilizar técnicas modernas de identificação ;
- Adaptar e diferenciar currículos e programas aos diferentes níveis, em escolas públicas e particulares ;
- Implantar cursos de graduação e pós-graduação específicos para a área nas universidades brasileiras ;
- Realizar mais pesquisas com essa população para a nossa realidade; Publicar e implementar a literatura especializada em nosso idioma.
Fonte: Altas Habilidades/Superdotação - Encorajando Potenciais (Angela M. R. Virgolim , SEESP/MEC, Brasília, 2007)
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