domingo, 14 de outubro de 2012

Dificuldade na interação social e tendência a comportamento repetitivo caracterizam a síndrome de Asperger. Portadores desse tipo de autismo, porém, têm inteligência e habilidades lógico matemáticas notáveis




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edição 159 - Abril 2006


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Arredios e geniais



por Paola Emilia Cicerone



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JULIA FULLERTON-BATTEN
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Por favor, não se cure. Soa pelo menos insólito o pedido dos alunos de um instituto em Nova York. Tão insólito a ponto de ter merecido um artigo no New York Times, jornal que acolheu os protestos de um grupo de adolescentes em que foi diagnosticada a síndrome de Asperger e outras formas do que os textos de psiquiatria definem como “transtornos do espectro autístico”.



A definição é recusada pelos jovens americanos portadores de Asperger, para os quais o seu modelo de raciocínio é simplesmente um modo diferente de pensar. “As nossas dificuldades não nascem de nós, mas da sociedade”, afirmam os adolescentes entrevistados pelo jornal nova iorquino. E pedem que as escolas estimulem as suas capacidades intelectuais para ajudá-los a viver como os outros: os chamados normais ou “neurotípicos”, como os define, de forma polêmica, parte da comunidade autística.



Não se trata de um protesto isolado: nos países anglo-saxões, nasceram associações como a Autistic Liberation Front, que se propõe defender a dignidade dos cidadãos autistas, e sites que coordenam iniciativas contra as discriminações denunciadas por muitos deles.



A mobilização é sobretudo de portadores de Asperger ou “autistas high functioning”, isto é, pessoas em que os traços característicos do autismo não são acompanhados por deficiências mentais, e que, não obstante algumas dificuldades em manejar os códigos comunicativos “normais”, estão em condições de se fazer ouvir e entender. E de estudar com proveito: é para esses estudantes brilhantes e um pouco especiais, de fato, que estão aparecendo, nos Estados Unidos, escolas projetadas para oferecer ambiente didático estruturado e atividades de apoio na socialização, que é para eles o obstáculo mais difícil de superar.

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A síndrome de Asperger recebeu seu nome de um pediatra vienense que, em 1944, descreveu pela primeira vez um grupo de crianças que mostravam alguns traços autísticos – dificuldade de interação social, falta de jeito, tendência a comportamentos repetitivos e estereotipados –, não associados, porém, com retardo mental: os adolescentes com Asperger têm em geral uma inteligência notável, superior à média, particularmente nas disciplinas lógico-matemáticas.



Mas foram necessários 50 anos para que a síndrome de Asperger encontrasse lugar no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV). E mesmo hoje a diferença entre Asperger e autismo high functioning precisa ser mais bem explicada, ainda que os dois distúrbios estejam classificados de maneira distinta. “Daqui a alguns 
anos, provavelmente estaremos em condições de operar uma distinção com base nas alterações genéticas e na estrutura cerebral, mas por ora os limites entre ambos são bastante nebulosos”, explica Paolo Curatolo, professor de neuropsiquiatria infantil na Universidade de Roma.



Torna ainda mais confusa a situação a grande variedade de sintomas que caracterizam esses distúrbios, cuja incidência parece estar crescendo, provavelmente devido a uma maior precisão nos diagnósticos: segundo as estatísticas, uma pessoa em cada 250 sofreria da síndrome.



Mas onde fixar a fronteira entre patologia e modo de ser? A polêmica não é nova: “Pensem nos canhotos, que até há alguns anos eram corrigidos, ou nos homossexuais, que por séculos foram considerados doentes”, dizem muitos portadores de Asperger.



“O artigo publicado no New York Times é provocativo e descreve uma realidade muito diversa da nossa, mas enfrenta um problema importante: alguns dos distúrbios de que sofrem as pessoas com Asperger, como a depressão, podem ser causados, ou pelo menos acentuados, pela atitude da sociedade e pelo fato de que essas pessoas se percebem como inadequadas em relação ao que lhes é exigido”, sublinha Curatolo.



Ser reconhecido como portador de Asperger proporciona uma explicação plausível para excentricidades e dificuldades, o que facilita a aceitação por parte da sociedade. Mas pode significar também ser submetido a terapias não desejadas, que alguns consideram uma verdadeira violência.




O grande problema ainda é difundir o conhecimento da síndrome, pouco conhecida mesmo no ambiente médico. Muitos adultos com Asperger não sabem que são portadores da síndrome. Professores e alunos freqüentemente não têm orientação para lidar com os problemas que surgem na escola. “A variedade dos distúrbios de desenvolvimento e a dificuldade do diagnóstico podem levar a se pôr no mesmo caldeirão situações muito diversas”, nota o médico Paolo Cornaglia Ferraris, autor de Asp Asper Asperger, livro em que uma criança “como todas as outras, mas não bem igual-igual”, conta em primeira pessoa o desafio de viver com “um distúrbio de relacionamento que tem a ver com a dificuldade de regular os órgãos de percepção”.



Os portadores de Asperger sofrem, de fato, de uma espécie de hipersensibilidade sensorial e emotiva que torna difícil inserir-se num ambiente apinhado, barulhento ou muito iluminado, “como se qualquer forma de comunicação tivesse um volume muito alto para ser tolerado”.




VIDA DE ASPIE



Entre normalidade e deficiência há um limite sutil, que pode depender de muitas variáveis, como o contexto familiar ou o ambiente escolar. São as circunstâncias que permitem a um adolescente com Asperger desenvolver a inteligência que, aliada a uma incansável dedicação às matérias preferidas, pode ajudá-lo a abrir caminho para a sociedade e para ele próprio aceitar o seu comportamento. Num contexto diverso, o mesmo adolescente poderia ser rotulado como deficiente antes de ter a possibilidade de mostrar seu valor. O mesmo vale para os adultos. Há portadores de Asperger que passaram toda a vida sem um diagnóstico, aprendendo a conviver com suas estranhezas. Outros casos são mais dramáticos, e há quem viva à margem do convívio social.



“Não existe o branco ou o preto, uma linha de demarcação precisa entre uma personalidade normal e uma patológica”, sustenta Temple Gardin, a professora autista que se tornou famosa ao ter sua história contada por Oliver Sacks em Um antropólogo em Marte.



O DSM-IV, porém, busca traçar um limite: os diversos sintomas representam uma síndrome quando começam a comprometer seriamente uma área importante da vida, como o trabalho ou as relações afetivas e sociais. Mas são mesmo os sintomas que constituem o problema? “É difícil dizer se são nossas 'fixações' que tornam difíceis nossas relações com os outros ou se a dificuldade de se comunicar faz com que nos concentremos no que fazemos de melhor ”, observa um adolescente com Asperger. E, segundo um adolescente portador de Asperger, “a nossa sociedade, tão baseada na comunicação, nos leva a ver com suspeita quem tem problemas de relacionamento e a rotular como doentes pessoas que, no passado, teriam sido consideradas talvez esquisitas ou apenas solitárias, mas, ao menos, eram aceitas”.




“A meu ver, a síndrome de Asperger é somente um diferente modelo cognitivo, que comporta forte tendência à sistematização e certa dificuldade em estabelecer relações empáticas com os outros”, explica Simon Baron-Cohen, diretor do Centro de Pesquisa em Autismo da Universidade de Cambridge. “Acredito que a sociedade poderia se esforçar para ser mais tolerante no contato com esses indivíduos, aprendendo a valorizar suas capacidades e a não estigmatizar os seus limites.”




É sempre grande o risco de descuidar de quem verdadeiramente necessita de ajuda. 
 Nos Estados Unidos, associações como a Asperger Liberation Front são duramente criticadas por pais de crianças com distúrbios de desenvolvimento, os quais gostariam de conduzir seus filhos, o quanto for possível, à normalidade.




Perduram questões básicas : mesmo para as pessoas com Asperger a solidão pode ser um peso, e também para elas a inserção no mundo do trabalho é necessária para garantir não só a indispensável autonomia econômica, mas também importante estímulo intelectual. “Muitos portadores sofrem de depressão causada precisamente pela dificuldade de estabelecer relações com os outros, especialmente a partir da adolescência”, explica Curatolo. Assim, se não existem terapias para a síndrome – e ainda se discute se ela é uma doença –, muitos portadores de Asperger devem tomar medicamentos antidepressivos ou ansiolíticos para reduzir agitações, distúrbios obsessivos e fobias que nascem da dificuldade de se confrontar com o ambiente.



NO LIMIAR DO GÊNIO



Ao mesmo tempo, a síndrome de Asperger exerce um certo fascínio na opinião pública. Diversos estudiosos identificaram traços de Asperger em alguns grandes nome do passado, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Ludwig Wittgenstein e Albert Einstein. E mesmo Bill Gates, segundo alguns, mostraria característicos traços da síndrome: não apenas certo embaraço social e grande habilidade com a informática, mas também o hábito de balançar discretamente o corpo de um lado a outro. No mundo da ficção científica, doutor Spock, o sábio vulcaniano de orelhas pontudas de Jornada nas estrelas, apresenta algumas características de Asperger: racionalidade extrema e incapacidade de apreciar as convenções sociais. A dedicação obsessiva e uma boa dose de misantropia tornam potenciais vítimas de Asperger investigadores famosos, como Sherlock Holmes ou Gil Grissom, protagonista do seriado CSI Las Vegas.




No entanto, no mundo dos aficionados pela informática, Aspie – o termo familiar com que se autodefinem os portadores – tornou-se quase um sinônimo de geek (ou, como se diz no Brasil, cdf). Tanto que, atualmente, são vendidas camisetas e xícaras de café ou mouse pads com escritos como “Adultos com Asperger : não queremos a cura (não aquela que alguém tenha escolhido por nós)”. Enquanto isso, nos sites sobre Aspies, multiplicam-se as “instruções de uso” para falar com os outros, os chamados “normais”: aprenda o que é metáfora; pergunte como vai a um estranho mesmo que a saúde dele não lhe interesse.




“Tudo bem que os outros, para nos entender, imaginem que nos falta algum componente no circuito cerebral”, observa um jovem portador de Asperger num fórum de discussão. “Os indivíduos com Asperger são pessoas mais frágeis que a média do ponto de vista evolutivo, porque a sua dificuldade de entender o pensamento dos outros as torna vulneráveis: mas uma sociedade igualitária deve estar em condições de tolerar diferenças e variantes”, conclui Curatolo. Enquanto isso, do universo dos portadores de Asperger ecoa uma pergunta ainda sem resposta: o que é a normalidade, e quem está em condições de avaliá-la ?


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