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Arredios e geniais
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por Paola Emilia Cicerone
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Por favor, não se cure. Soa
pelo menos insólito o pedido dos alunos de um instituto em Nova York. Tão
insólito a ponto de ter merecido um artigo no New York Times,
jornal que acolheu os protestos de um grupo de adolescentes em que foi
diagnosticada a síndrome de Asperger e outras formas do que os textos de
psiquiatria definem como “transtornos do espectro autístico”.
A definição é recusada pelos jovens americanos portadores de Asperger, para
os quais o seu modelo de raciocínio é simplesmente um modo diferente de
pensar. “As nossas dificuldades não nascem de nós, mas da sociedade”,
afirmam os adolescentes entrevistados pelo jornal nova iorquino. E pedem
que as escolas estimulem as suas capacidades intelectuais para ajudá-los a
viver como os outros: os chamados normais ou “neurotípicos”, como os
define, de forma polêmica, parte da comunidade autística.
Não se trata de um protesto isolado: nos países anglo-saxões, nasceram
associações como a Autistic Liberation Front, que se propõe defender a
dignidade dos cidadãos autistas, e sites que coordenam iniciativas contra
as discriminações denunciadas por muitos deles.
A mobilização é sobretudo de portadores de Asperger ou “autistas high
functioning”, isto é, pessoas em que os traços característicos do autismo
não são acompanhados por deficiências mentais, e que, não obstante algumas
dificuldades em manejar os códigos comunicativos “normais”, estão em
condições de se fazer ouvir e entender. E de estudar com proveito: é para
esses estudantes brilhantes e um pouco especiais, de fato, que estão
aparecendo, nos Estados Unidos, escolas projetadas para oferecer ambiente
didático estruturado e atividades de apoio na socialização, que é para eles
o obstáculo mais difícil de superar.
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A síndrome de Asperger
recebeu seu nome de um pediatra vienense que, em 1944, descreveu pela
primeira vez um grupo de crianças que mostravam alguns traços autísticos –
dificuldade de interação social, falta de jeito, tendência a comportamentos
repetitivos e estereotipados –, não associados, porém, com retardo mental:
os adolescentes com Asperger têm em geral uma inteligência notável,
superior à média, particularmente nas disciplinas lógico-matemáticas.
Mas foram necessários 50 anos para que a síndrome de Asperger encontrasse
lugar no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV).
E mesmo hoje a diferença entre Asperger e autismo high functioning precisa
ser mais bem explicada, ainda que os dois distúrbios estejam classificados
de maneira distinta. “Daqui a alguns anos, provavelmente estaremos
em condições de operar uma distinção com base nas alterações genéticas e na
estrutura cerebral, mas por ora os limites entre ambos são bastante
nebulosos”, explica Paolo Curatolo, professor de neuropsiquiatria infantil
na Universidade de Roma.
Torna ainda mais confusa a situação a grande variedade de sintomas que
caracterizam esses distúrbios, cuja incidência parece estar crescendo,
provavelmente devido a uma maior precisão nos diagnósticos: segundo as
estatísticas, uma pessoa em cada 250 sofreria da síndrome.
Mas onde fixar a fronteira
entre patologia e modo de ser? A polêmica não é nova: “Pensem nos canhotos,
que até há alguns anos eram corrigidos, ou nos homossexuais, que por
séculos foram considerados doentes”, dizem muitos portadores de Asperger.
“O artigo publicado no New
York Times é provocativo e descreve uma realidade muito diversa da nossa,
mas enfrenta um problema importante: alguns dos distúrbios de que sofrem as
pessoas com Asperger, como a depressão, podem ser causados, ou pelo menos
acentuados, pela atitude da sociedade e pelo fato de que essas pessoas se
percebem como inadequadas em relação ao que lhes é exigido”, sublinha
Curatolo.
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Ser reconhecido como portador
de Asperger proporciona uma explicação plausível para excentricidades e
dificuldades, o que facilita a aceitação por parte da sociedade. Mas pode
significar também ser submetido a terapias não desejadas, que alguns
consideram uma verdadeira violência.
O grande problema ainda é
difundir o conhecimento da síndrome, pouco conhecida mesmo no ambiente
médico. Muitos adultos com Asperger não sabem que são portadores da
síndrome. Professores e alunos freqüentemente não têm orientação para lidar
com os problemas que surgem na escola. “A variedade dos distúrbios de
desenvolvimento e a dificuldade do diagnóstico podem levar a se pôr no
mesmo caldeirão situações muito diversas”, nota o médico Paolo Cornaglia
Ferraris, autor de Asp Asper Asperger, livro em que uma criança
“como todas as outras, mas não bem igual-igual”, conta em primeira pessoa o
desafio de viver com “um distúrbio de relacionamento que tem a ver com a
dificuldade de regular os órgãos de percepção”.
Os portadores de Asperger
sofrem, de fato, de uma espécie de hipersensibilidade sensorial e emotiva
que torna difícil inserir-se num ambiente apinhado, barulhento ou muito
iluminado, “como se qualquer forma de comunicação tivesse um volume muito
alto para ser tolerado”.
VIDA DE ASPIE
Entre normalidade e deficiência há um limite sutil, que pode depender de
muitas variáveis, como o contexto familiar ou o ambiente escolar. São as
circunstâncias que permitem a um adolescente com Asperger desenvolver a
inteligência que, aliada a uma incansável dedicação às matérias preferidas,
pode ajudá-lo a abrir caminho para a sociedade e para ele próprio aceitar o
seu comportamento. Num contexto diverso, o mesmo adolescente poderia ser
rotulado como deficiente antes de ter a possibilidade de mostrar seu valor.
O mesmo vale para os adultos. Há portadores de Asperger que passaram toda a
vida sem um diagnóstico, aprendendo a conviver com suas estranhezas. Outros
casos são mais dramáticos, e há quem viva à margem do convívio social.
“Não existe o branco ou o preto, uma linha de demarcação precisa entre uma
personalidade normal e uma patológica”, sustenta Temple Gardin, a
professora autista que se tornou famosa ao ter sua história contada por
Oliver Sacks em Um antropólogo em Marte.
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O DSM-IV, porém, busca traçar
um limite: os diversos sintomas representam uma síndrome quando começam a
comprometer seriamente uma área importante da vida, como o trabalho ou as
relações afetivas e sociais. Mas são mesmo os sintomas que constituem o
problema? “É difícil dizer se são nossas 'fixações' que tornam difíceis
nossas relações com os outros ou se a dificuldade de se comunicar faz com
que nos concentremos no que fazemos de melhor ”, observa um adolescente com
Asperger. E, segundo um adolescente portador de Asperger, “a nossa
sociedade, tão baseada na comunicação, nos leva a ver com suspeita quem tem
problemas de relacionamento e a rotular como doentes pessoas que, no
passado, teriam sido consideradas talvez esquisitas ou apenas solitárias,
mas, ao menos, eram aceitas”.
“A meu ver, a síndrome de Asperger é somente um diferente modelo cognitivo,
que comporta forte tendência à sistematização e certa dificuldade em
estabelecer relações empáticas com os outros”, explica Simon Baron-Cohen,
diretor do Centro de Pesquisa em Autismo da Universidade de Cambridge.
“Acredito que a sociedade poderia se esforçar para ser mais tolerante no
contato com esses indivíduos, aprendendo a valorizar suas capacidades e a
não estigmatizar os seus limites.”
É sempre grande o risco de descuidar de quem verdadeiramente necessita de
ajuda. Nos Estados Unidos, associações como a
Asperger Liberation Front são duramente criticadas por pais de crianças com
distúrbios de desenvolvimento, os quais gostariam de conduzir seus filhos,
o quanto for possível, à normalidade.
Perduram questões básicas : mesmo para as pessoas com Asperger a solidão
pode ser um peso, e também para elas a inserção no mundo do trabalho é
necessária para garantir não só a indispensável autonomia econômica, mas
também importante estímulo intelectual. “Muitos portadores sofrem de
depressão causada precisamente pela dificuldade de estabelecer relações com
os outros, especialmente a partir da adolescência”, explica Curatolo.
Assim, se não existem terapias para a síndrome – e ainda se discute se ela
é uma doença –, muitos portadores de Asperger devem tomar medicamentos
antidepressivos ou ansiolíticos para reduzir agitações, distúrbios
obsessivos e fobias que nascem da dificuldade de se confrontar com o
ambiente.
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NO LIMIAR DO GÊNIO
Ao mesmo tempo, a síndrome de Asperger exerce um certo fascínio na opinião
pública. Diversos estudiosos identificaram traços de Asperger em alguns
grandes nome do passado, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Ludwig Wittgenstein
e Albert Einstein. E mesmo Bill Gates, segundo alguns, mostraria
característicos traços da síndrome: não apenas certo embaraço social e
grande habilidade com a informática, mas também o hábito de balançar
discretamente o corpo de um lado a outro. No mundo da ficção científica,
doutor Spock, o sábio vulcaniano de orelhas pontudas de Jornada nas
estrelas, apresenta algumas características de Asperger: racionalidade
extrema e incapacidade de apreciar as convenções sociais. A dedicação
obsessiva e uma boa dose de misantropia tornam potenciais vítimas de
Asperger investigadores famosos, como Sherlock Holmes ou Gil Grissom,
protagonista do seriado CSI Las Vegas.
No entanto, no mundo dos aficionados pela informática, Aspie –
o termo familiar com que se autodefinem os portadores – tornou-se quase um
sinônimo de geek (ou, como se diz no Brasil, cdf). Tanto
que, atualmente, são vendidas camisetas e xícaras de café ou mouse
pads com escritos como “Adultos com Asperger : não queremos a cura
(não aquela que alguém tenha escolhido por nós)”. Enquanto isso, nos sites
sobre Aspies, multiplicam-se as “instruções de uso” para falar
com os outros, os chamados “normais”: aprenda o que é metáfora; pergunte
como vai a um estranho mesmo que a saúde dele não lhe interesse.
“Tudo bem que os outros, para nos entender, imaginem que nos falta algum
componente no circuito cerebral”, observa um jovem portador de Asperger num
fórum de discussão. “Os indivíduos com Asperger são pessoas mais frágeis que
a média do ponto de vista evolutivo, porque a sua dificuldade de entender o
pensamento dos outros as torna vulneráveis: mas uma sociedade igualitária
deve estar em condições de tolerar diferenças e variantes”, conclui
Curatolo. Enquanto isso, do universo dos portadores de Asperger ecoa uma
pergunta ainda sem resposta: o que é a normalidade, e quem está em
condições de avaliá-la ?
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